ABRUPTO

12.1.08


NUNCA É TARDE PARA APRENDER: MABRUK AL-IRAQ AL-JEDEED

Rajiv Chandrasekaran, Imperial Life in the Emerald City: Inside Iraq's Green Zone, 2006.

Nos EUA as universidades, os centros de investigação, as editoras, não tem nenhum problema em encomendar um livro a um jornalista que teve uma experiência excepcional, viver na "Green Zone" de Bagdad. Chandrasekaran trabalhava no Washington Post e nunca tinha escrito um livro, mas viveu em Bagdad o tempo bastante para nos dar um relato único sobre os anos da Coalition Provisional Authority, o governo de facto do Iraque dirigido por Paul Bremer, que só compartilhava o poder, também de facto, com o ayatollah Sistani e os revoltosos sunitas. É uma história que ainda precisa de mais tempo para assentar, mas que Chandrasekaran descreve como sendo o resultado de um misto de total ingenuidade, convicção, dedicação, coragem pessoal, da equipa da CPA, associada a uma grande ignorância sobre o Médio Oriente, o Iraque, e, muitas vezes, falta absoluta de bom senso, erros e oportunidades perdidas. O melhor e o pior da democracia americana estão aqui retratados, na mistura entre o esforço genuíno de querer fazer uma democracia jeffersoniana no Iraque e o absoluto irrealismo de muitas propostas.

Um exemplo é a história da elaboração do "código da estrada" iraquiano, copiado das regras de trânsito de um estado americano, escrito para acabar com os regulamentos locais que tornavam a polícia prepotente e corrupta, com possibilidades de prisão imediata e de receber multas em acto, sem qualquer procedimento legal. (Recordo-me de ver no Iraque a polícia a regular o trânsito aos pontapés aos carros...) O bom do americano queria introduzir regras que protegessem os cidadãos dos abusos da polícia, criando tribunais de trânsito, regras burocráticas de procedimento seguro, no meio de uma Bagdad a ferro e fogo, em que o sistema judicial colapsara e em que a polícia recém criada tinha certamente muito mais coisas para fazer do que estar a preencher formulários no meio do caos. Idêntica mistura de idealismo e irrealismo ocorreram em áreas como a da bolsa (sim, existe bolsa em Bagdad e funciona na base de notas manuscritas, quadros negros e giz), da privatização das empresas do estado, do sistema financeiro, etc., etc.



A isto se somava o desespero para fazer funcionar os serviços essenciais, em particular o fornecimento da electricidade (aqui há um retrato desses esforços), no meio de uma situação calamitosa gerada pela degradação dos últimos anos de Saddam, os estragos das várias guerras e por fim, dos saques. Os homens (e algumas mulheres, poucas) que trabalhavam para a CPA tinham o know how necessário, muita experiência não só nos EUA como na reconstrução de países em crise ou em situações pós-calamidade, no Kosovo, na zona curda do Iraque, mas defrontavam-se com uma tarefa impossível no meio do caos, da insegurança, com pouca gente a falar árabe e sem escoltas militares suficientes. A isso se somavam problemas políticos por resolver que tinham implicações nos serviços essenciais, como saber se a distribuição da escassa electricidade deveria privilegiar Bagdad, distribuir-se por todo país, ou ser resolvida província a província, com prioridade ao sul .

A descrição da "Green Zone" e dos seus habitantes trabalhando para a CPA, para a Halliburton e para as empresas de segurança, mostra-nos a estranha vida numa redoma, inconfortável, com poucos luxos e muitas privações, vivendo em contentores ou camaratas nos antigos palácios de Saddam, comendo fast food em cantinas ou nos dois ou três restaurantes, um chinês, uma pizzaria, que tinham ficado dentro do perímetro de segurança. Os seus habitantes eram especialistas, muitos dos quais voluntários, gente que abandonou o conforto americano, lugares na universidade, nas empresas, para fazerem aquilo que muitos pensavam ser uma utopia de engenharia política a favor do bem: um Iraque democrático, com livre mercado e prosperidade. Quando se verificam os seus curricula vê-se a importância das forças armadas na sociedade americana, onde muitos dos universitários, dos chefes de bombeiros, dos policias reformados, dos empresários, mesmo dos burocratas, que vieram para o Iraque tinham sido marines, pilotos, soldados e oficiais. Havia também gente nova, recrutada entre os apoiantes do Partido Republicano nas campanhas eleitorais, que davam o tom esmagadoramente republicano, conservador e liberal à CPA.

Ver entrevista de Chandrasekaran.

Hoje, anos depois do fim da CPA e da entrega de muitas responsabilidades governativas aos iraquianos, o legado da CPA a favor de um Iraque democrático, unido, laico, e com um mercado livre e aberto, está muito enfraquecido, mas não desapareceu. As eleições iraquianas foram um sucesso, muito do impulso para o entendimento entre grupos, tecido no texto constitucional, permanecerá. Muitas das pretensões de grandes reformas ideais ficaram no papel, e em muitos acasos significaram desvios a tarefas muito mais urgentes e a práticas mais realistas que dariam melhores resultados. Mas a perplexidade desta história permanece: o que é que se esperava que os americanos fizessem? Que mantivessem o Iraque pós-Saddam com as suas práticas de brutalidade e corrupção intactas? Que entregassem o poder aos religiosos xiitas radicais como Muqtada al-Sadr ou aos exilados que trouxeram no bolso?

Há quem dê uma resposta: não invadissem. Mas isso é toda uma outra história a que voltaremos.

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