ABRUPTO

16.9.07


A TRAGÉDIA QUE ESTÁ EM CARTAZ



O caso da "pequena Maddie" e o da princesa Diana são mais parecidos do que se imagina. Em ambos os casos existe um núcleo duro de violência trágica, um acidente brutal, um crime, uma morte ou um rapto. Seja qual for o desfecho final, não há happy end possível, não há retorno ao equilíbrio inicial, alguém sofreu inesperadamente, e esse sofrimento atinge os próximos. Sabemos que foi isto que aconteceu, esta é a coisa a sério, a real thing. Tudo o resto anda à volta mas não é da mesma natureza. E é o "resto" a história que vivemos, que nos interessa, que nos move, e para além deste ponto inicial, os factos pouco interessam, tudo é do domínio da ficção e, por cruel que seja dizê-lo, tudo é um enorme teatro, a gigantesca encenação do Pathos, rei e senhor do espaço público nas nossas sociedades de massas.

O que nós estamos a ver é um filme (e a seu tempo haverá um filme), um espectáculo, em que personagens "não procuram o autor" como no teatro moderno (que exactamente por essa perplexidade nunca será popular), mas onde cada personagem é um ícone, transporta consigo uma face trágica, que "fala" com a cidade, e a que esta responde com um coro. Sim, é puro teatro grego clássico, por cruel que seja dizê-lo assim insisto, aquele que Sólon queria proibir porque institucionalizaria a confusão entre a verdade e a mentira.

Nem podia deixar de ser doutra maneira, tão imersos estamos num mundo dominado pelo Pathos, e sem Ethos, nem Logos. Sentamo-nos em casa diante da televisão (o veículo dominante nos dias de hoje do espectáculo permanente, mas que não é o único, e está prestes a entregar a sua dominação a mais poderosos meios interactivos de que o Second Life é apenas um grosseiro precursor) e diante dos nossos olhos passa a tragédia da "pequena Maddie", que na realidade é a tragédia da Mãe McCann, o centro de tudo. Como nas grandes personagens femininas do teatro clássico, a tragédia desenrola-se entre o destino e a hubris, entre a dadora da vida e a sua possível roubadora, num duplo acto decisivo de princípio e fim, que mexe com os fundamentos de tudo o que consideramos adquirido e que nos foi intensamente transmitido no primeiro acto do espectáculo.

É verdade que a aceitar-se a tese de uma morte acidental pela mais trivial das razões (e como já afirmei os factos verdadeiramente não interessam), a de os pais quererem jantar sossegados com os amigos, dando um sedativo à filha para não terem que a aturar "histérica", perturbadora dos actos dos adultos - uma versão mais sofisticada de algo que nos campos se fazia com aguardente - seria apenas um retrato da vida irresponsável e fácil dos burgueses de hoje, de uma cultura de satisfação individual e egoísta. Se tudo tivesse ficado por aí, a morte acidental da criança por negligência dos pais, estaríamos de facto numa história dos nossos dias de egoísmo suburbano, de um jovem casal que quer ter filhos e viver a sua vida em férias para se divertir, "descansando das crianças" que não sabem onde pôr. Nada que não atravesse o Allgarve de uma ponta à outra, só que esta teria corrido mal, de uma forma mais gravosa para os pais do que se a criança tivesse vindo para a rua e fosse atropelada. A sua negligência é química, menos socialmente aceitável do que se tivessem deixado uma janela aberta ou os fósforos em cima da mesa. Mas seria só isso.

De novo insisto, pouco nos preocupamos com o destino da "pequena Maddie", mas já nos colamos ao ecrã se este egoísmo inicial desleixado tivesse levado a um outro egoísmo essencial, o de querer ocultar a negligência com uma história inventada de rapto para que esta overdose de sedativos "não nos estrague a vida toda". Aqui sim irrompe o Mal puro e as personagens tornam-se trágicas, é o teatro absoluto. Porque, a ser verdadeira a acusação então nós sabemos por intuição, e ninguém precisa de falar disso, que aquela mãe e aquele pai transportaram o cadáver da filha e enterraram-no, ou deitaram-no ao mar, ou fizeram-no desaparecer de forma ainda mais terrível, e depois simularam durante meses uma dor que não tinham (?), numa encenação de que foram magníficos actores sem uma falha. Convenceram-nos a todos e à Cúria Romana que lhes permitiu ver o Papa. Se isto não é o Mal entre nós, o que é que é o Mal? Um raptor profissional para uma rede de pedofilia, actuando por dinheiro, é um menino de coro face a este Mal, que tem a face do Engano, que mistura os sentimentos, que tem todas as características de incompreensibilidade, surpresa, devastação, crueldade pura, para termos medo, muito medo. É o exorcismo desse medo que procuramos na tragédia, no teatro, tocando-o ao de leve e fugindo dele, como se fosse um acto sacrificial.

Vejam-se as personagens femininas, porque esta é uma tragédia só possível com personagens centrais femininas, a começar pela equivalente a Medeia, Electra, Clitemnestra, Lady Macbeth, a Mãe, Kate McCann no seu perfil de solitária, deprimida, psicótica, com a sua face dura e esculpida, sem variações, em silêncio, como uma rocha, possuída de qualquer sentimento essencial que pensávamos até ontem ser a dor da perda da filha e hoje suspeitamos ser a mais terrível das faces. Ao passar, agarrada a um boneco de Maddie, infantilizando-se nessa imagem, como se fosse ela própria a filha perdida, dá ainda mais intensidade a um mundo em que não sabemos como penetrar, e que se esconde por detrás de uma cara, outra cara e outra e outra. No meio desse labirinto de máscaras, está uma capaz de tudo. E a cara capaz de tudo lida com a Morte de forma pouco natural, com frieza, juntando as mãos às da ceifeira.

O resto das personagens quase desaparecem, o Pai McCann é que dá voz à Mãe, mas se a terrível hipótese se confirmar ainda mais se apagará como personagem. O Allgarve é não só o cenário, como é dele que vem o coro, primeiro silencioso e compungido, depois vociferante, insultando a Mãe, e trazendo ao de cima todas as complexidades e conflitos que permaneciam latentes. De repente, emerge o próprio tecido social, as tensões entre a comunidade inglesa (e as suas suspeições antiportuguesas, sobre a polícia e sua competência) e a hostilidade perante aquela mulher loura, vinda de um mundo louro e rico que paga o turismo algarvio, mas que é e será sempre de fora. Algumas fotografias em que se vê Kate McCann com um fundo de portugueses dizem tudo, a diferença na delicadeza das faces e no trato do corpo, e a rudeza popular, uma boçalidade camponesa nos polícias e nos "populares". Mesmo, se olharmos assim, nem a "pequena Maddie" escapa a um sinal do Mal, a uma marca demoníaca, o seu sinal de nascença num olho riscado, uma coisa para que há trezentos anos se olharia com muita atenção e nenhuma inocência.

E se nada disto for verdade, a acusação se revelar ser falsa, os McCann inocentes e duplamente vítimas? E se a história estiver mais perto da "honra perdida de Katarina Blum", da vitimização conspirativa de uma polícia que não consegue descobrir os raptores, associada ao festim mediático, que mais do que mães dolorosas deseja mães criminosas com todo o dolo do mundo? Pode ser, mas para o espectáculo pouco importa. A não ser que apareça Maddie com os seus raptores, numa história suja mas limpa de ambiguidades, a suspeita pairará sempre sobre os McCann, porque esta é a natureza deste tipo de espectáculo, onde ninguém sai ileso e não há reparação possível. Nem nós, que perdemos discernimento, distância, razão, equilíbrio, num mundo dominado pelo Pathos.

(No Público de 15 de Setembro de 2007.)

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