ABRUPTO

2.9.07


PÔR OS PÉS NA TERRA



Acabadas as férias, os portugueses que saíram de casa (menos do que se pensa) chegam tão cansados quanto partiram. Esta é a natureza das férias modernas, mas ainda vai demorar algum tempo até que as pessoas se apercebam que é assim. Os aviões, os aeroportos, o destino das bagagens, os engarrafamentos, os furacões tropicais e a chuva fora de época são os bodes expiatórios do cansaço, mas o mal vem de uma característica das sociedades modernas: haver muita gente a fazer as mesmas coisas, nos mesmos sítios, ao mesmo tempo e sem muito dinheiro. Dá sempre torto.

Agosto é o mês do escapismo total, para 11 meses de escapismo parcial. É o mês da silly season oficial, para 11 meses de silly season oficiosa, que é o reino da espectacularidade em tudo o que é espaço público. Talvez por isso, o contraste com a realidade que passa pelos interstícios do escapismo é mais poderosamente depressor que noutras alturas. Voltar a casa, voltar ao trabalho, voltar à escola, voltar ao quotidiano, voltar à vida de todos os dias, é uma experiência sem entusiasmo, sem esperança. Pode-se escrever o mesmo todos os anos, porque todos os anos é o mesmo.

Só que este ano está pior e não é apenas um estado de alma, uma impressão, um pessimismo avulso. É a malvada da realidade. Não há escapismo que oculte que Portugal não anda para a frente, o que significa que anda para trás. A economia portuguesa não arranca, o desemprego aumenta e vai continuar a aumentar, a qualidade de vida dos portugueses deteriora-se no seu bolso, na sua casa, na sua vida. Estamos mais pobres, vamos ainda ficar mais pobres. Ponto final.

A meio do ciclo político deste Governo, se o país está cansado, o Governo está exausto, com excepção do primeiro-ministro, para quem governar tem uma parecença próxima com o jogging, com as vantagens e os defeitos de uma actividade que não se caracteriza por ter um destino, mas sim um trajecto. À sua frente só tem dificuldades que já não pode assacar aos seus predecessores com o mesmo à-vontade com que o tem feito. Ele continuará a fazê-lo por inércia e porque não sabe fazer doutra maneira, mas cada vez mais é o Governo Sócrates que será medido e não os Governos Barroso-Lopes, por muito incompetentes que tenham sido. E as medições, algumas que já se conhecem, outras cujos resultados já se sentem na pele, não lhe vão ser favoráveis, com excepção do controlo do deficit público.

O choque da realidade, por muitas distracções, propaganda, "momentos-Chávez" que haja na benigna RTP, fará com que as pessoas cansadas tenham pouca paciência e essa impaciência voltar-se-á contra o estilo. O estilo do homem. O estilo do nosso primeiro-ministro. O que ele é, o âmago da governação socialista actual. Sócrates é um governante "moderno" dos tempos do spin e do espectáculo, com poucas ideias e muitos slogans e, acima de tudo, muita pose. O estilo é o homem, mas o problema do homem é que o estilo gasta-se muito depressa.

Veja-se o caso exemplar, talvez o mais exemplar deste Governo, que ainda está vivo e aos saltos e ainda vai dar muito que falar: a escolha do novo aeroporto de Lisboa, a questão da Ota. Da voz dos "técnicos" oficiais (os que o Governo escolheu) vai sair um veredicto limitado à partida apenas a duas escolhas: ou Alcochete ou Ota. Se sair Ota, o que certamente o Governo desejaria e a solução com que muitos "técnicos" já estão comprometidos, numa semana o Governo faz outro PowerPoint, com filmes de computador em apoio e fará uma farândola de propaganda sobre o acertado da sua decisão, atrasada criminosamente pelos do costume. Um mês depois põe lá os camiões, as terraplenagens e o betão num átimo, até porque bem precisa para combater o desemprego. Como qualquer decisão que favoreça a Ota está à partida inquinada pela maneira como o Governo fez as coisas, não convencerá ninguém sobre a sua seriedade, e ficará sempre com a suspeita que andou a montar uma distracção para o Presidente da República ver. Mário Lino poderá então continuar o seu "projecto pessoal". Se sair Alcochete, o Governo terá que fazer alguns malabarismos, deitará borda fora o ministro Mário Lino, mas terá muita dificuldade em explicar por que razão a teimosia e o "quero, posso e mando" do primeiro-ministro esteve a um nanossegundo de nos fazer deitar biliões para o sítio errado. O estilo é o homem e o estilo, quando deixa de ser "estiloso", mata.

A Ota é apenas um exemplo, porque se começássemos a fazer o escrutínio sobre como muitas das reformas anunciadas estão a ser conduzidas, veríamos a enorme diferença entre a amplitude do anúncio e a escassez de resultados. Pior ainda: como algumas anunciadas reformas eram muito bonitas no papel, obtiveram muito apoio como intenção, mas na prática estão a agravar os problemas que pretendiam resolver. O modo populista e punitivo como as reformas foram lançadas colocou contra as reformas, numa amálgama de recusa, os melhores e os piores profissionais e isso impede que haja forças que lhes sirvam de sustentação. Nos discursos oficiais, as palavras são muito bonitas; no interior das escolas, das repartições, dos hospitais, dos serviços públicos, a realidade é o caos e a desorganização, é um agravar dos problemas sobre um enorme mal-estar, em que o que é mais afectado é o melhor e não o pior dos serviços do Estado.

Esta análise "micro" das reformas é pouco jornalística, mas é urgente. É urgente que se vá às escolas e às repartições saber como estão a ser aplicadas medidas como a hierarquização dos professores ou os critérios de mobilidade na função pública, para encontrar ambientes de cortar à faca, em que não é o mérito que impera, mas sim o acantonamento burocrático, os privilégios para os que estão, os conflitos de todos contra todos, as prepotências das chefias, a paralisia entre uma greve de zelo universal não proclamada mas eficaz nos seus efeitos de resistência e uma lei do silêncio e do medo. Corre-se o risco de ter como resultado a diminuição do já muito escasso know how e do capital de experiência existente nos serviços públicos e das medidas aplicadas terem apenas efeitos de contenção financeira, deixando os serviços públicos muito pior do que estavam. Em sectores cruciais como o ensino e a saúde, o preço será muito elevado se a retórica "macro" das reformas esconder a realidade "micro". E não adianta vir dizer que todas as reformas são assim, têm estes efeitos, porque não é verdade. Pode, de facto, estar apenas a assistir-se a mais uma operação de aperto financeiro, sem cuidar dos efeitos perversos que ficam pelo caminho e sem conteúdo reformista real. O barato pode-nos sair muito caro.
Um exemplo da necessidade da análise micro referido já há algum tempo no Abrupto era o das escolas onde "os professores vivem situações dramáticas muitas das quais pouco têm a ver com qualquer reforma de per si, mas sim com medidas mal pensadas, atabalhoadas, incompetentes e por critérios que estão a atingir os professores com um rastro de reais injustiças, sentidas em primeiro lugar pelos melhores entre eles. O sentimento de injustiça é profundo e, em demasiados casos, justificado. " Alguns socialistas protestaram no Abrupto e noutros blogues negando que tal correspondesse à realidade. O secretário de Estado adjunto da Educação, Jorge Pedreira vem confirmar o que escrevi:

"A tutela vai permitir o acesso a professor titular, por nomeação, dos docentes do antigo décimo escalão que foram ultrapassados por colegas da mesma escola ou agrupamento com classificações mais baixas, explicou hoje o (...) Admitindo que as regras deste primeiro concurso a professor titular criaram "injustiças", Jorge Pedreira anunciou hoje a um grupo de jornalistas que "o Ministério da Educação admite criar um mecanismo transitório" para que "sejam também providos a professor titular" os docentes do décimo escalão com menos de 95 pontos de classificação de escolas ou agrupamentos onde outros professores de escalões inferiores acederam ao topo da carreira com notas mais baixas." (Público)

O desgaste do estilo, logo, do homem, não se manifesta de forma catastrófica. Até um dia. Não se revelará tão cedo nas sondagens, a não ser como uma usura lenta, porque estas têm uma inércia própria e verdadeiramente só mudarão quando o tempo for de eleições e houver alternativa, mas o cansaço, a impaciência estão já cá. O ambiente torna-se volátil e é essa volatilidade, e não "erros" da máquina comunicacional do Governo, como alguns dizem, que é propícia para que cada dificuldade se amplie, cada caso se torne um escândalo. O ar cheira a cansaço, a apatia, a impaciência, a fatalismo, a desesperança e a repetição do show optimista habitual, neste ambiente miasmático, dissolve qualquer estilo como se fosse ácido. Só os stand up comedians proliferam nesta atmosfera. O tempo ainda lhes pertence, mas a prazo será de quem aparecer como alternativa. Espero que ainda haja suficiente realidade para não nos deixarmos levar por mais "estilosos".

(No Público de 1 de Setembro de 2007.)

*
Foi com enorme pesar que assisti ao silêncio ensurdecedor de tanta gente, com responsabilidades a vários níveis, acerca deste malfadado concurso, cujas consequências só serão contabilizadas daqui a algum tempo. No entanto, vale mais tarde do que nunca.

Sou professora há mais de 21 anos. Deveria ter passado ao 9º escalão em Março de 2007, tendo até frequentado acções de formação, na área disciplinar a que pertenço, correspondentes ao número de créditos de que necessitava. Concorri a professora titular. Obtive 144 pontos, apesar de terem sido considerados apenas 7 anos da minha vida profissional. Tenho a pontuação máxima na assiduidade, pese embora o facto de, nestes sete anos, ter estado hospitalizada em dois anos consecutivos. Não fui provida, dado que no meu departamento só havia 1 vaga, que foi preenchida pelo Presidente do Conselho Executivo. Tenho a segunda pontuação mais elevada da minha escola e não fui provida. Alguns cargos, como a direcção de instalações, ou a representação da escola na Comissão Pedagógica de um Centro de Formação de Professores, nem sequer foram considerados. A direcção de turma foi completamente desvalorizada, apesar de todos saberem que é um dos cargos que mais trabalho dá. Outros cargos, como o de presidente da Assembleia, foram completamente inflacionados em termos de pontuação. Não se percebe que critérios foram usados na abertura de vagas, apesar do site do ME ter publicitado uma fórmula que não chegou a ser publicada juntamente com o aviso de abertura do concurso.

Na minha escola passou-se o seguinte: um docente esteve no ano lectivo de 2006/2007 destacado no Conselho Executivo. O docente é QZP e está afecto noutra escola. Como refere o ponto 3 do artigo 6º do DL nº 200/2007, os docentes de QZP concorriam na escola onde estão afectos. Então, o colega foi aconselhado, pela Direcção Regional, a concorrer na escola onde exerce funções, tendo por base o ponto B2 do Manual de Instruções Interactivo, disponível no site da DGRHE, que refere que, em regra, os docentes concorrem onde exercem funções. Essa regra é válida para os docentes de QE. Parece-me que o artigo 6º é claro. Temos assim um Manual de Instruções a contrariar a própria legislação. Isto é legal? Claro que não pode ser. Bastava consultar-se a lista definitiva de admissão, onde, à frente do nome do docente, era mencionada a alínea d), que correspondia ao seguinte texto: " docente que concorre na escola onde está afecto". O que não era verdade. Ou seja, é provido num lugar de um quadro ao qual não pertencia, ultrapassando colegas com mais tempo de serviço que ficam assim impossibilitados de concorrer àquele lugar. Dei uma vista de olhos a algumas escolas da área da minha Direcção Regional. Muitos dos candidatos providos têm pontuações inferiores à minha. Ficaram vagas por preencher (três, mais concretamente), no departamento a que pertenço, nas restantes duas escolas do meu concelho. E também em concelhos limítrofes. Na minha escola foram providos três docentes, que equivalem a 12% dos docentes do quadro. Como só existia uma docente do 10º escalão e dois dos docentes providos fazem parte do Conselho Executivo, restam apenas dois titulares. Atendendo à proporção que existe entre o número de alunos e turmas das diversas escolas, criar-se-ão situações de enorme desigualdade. Vejo escolas a abarrotar de titulares e outras onde praticamente não existem. Por curiosidade, consultei a página de uma escola da zona de Lisboa. No departamento a que também pertenço foram providos dezanove docentes do 10º escalão e abertas 6 vagas que, neste momento, devido à igualdade na pontuação, já representam oito providos dos 8º e 9º escalões (o que também não estava previsto na legislação, pois o desempate seria efectuado tendo por base a formação académica e a assiduidade e, nesta, é demasiada coincidência dois docentes terem exactamente o mesmo número de dias e de tempos de faltas. E atenção que a criação de vagas adicionais não ocorreu em todas as escolas!). Ou seja, ao todo, vinte e sete titulares no departamento de matemática e das ciências experimentais. Existem muitas outras situações que nem sequer vou referir. Quem está nas escolas conhece-as demasiado bem.

Aliás, se o sistema anterior era perverso, essencialmente porque quem tinha o dever de exercer o poder hierárquico não estava para se aborrecer, obtendo satisfaz quem trabalhava e quem se esquivava ao trabalho, este concurso revelou-se diabólico.

(Maria Amélia Bento Ferreira)

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Escrevo-lho apenas para lhe dizer que está enganado quando me classifica como socialista (" Alguns socialistas protestaram no Abrupto…”) pelo facto de eu ter rebatido os seus argumentos relativamente ao concurso para professor titular. Também nunca tive simpatia pelo anarquismo como a ministra Maria de Lurdes Rodrigues e muito menos gosto da política da senhora. Penso que pela sua capacidade de discutir um assunto não precisa de usar comigo a técnica de me identificar com um grupo do qual conhece sobejamente os argumentos e as manhas.

O que motivou a fazer o comentário, que o Pacheco Pereira gentilmente publicou no Abrupto, é chamar a atenção para a sua argumentação que é débil, nada rigorosa e com falsidades. As perguntas e desafios que lhe fiz permanecem sem resposta e ao contrário do que o Pacheco Pereira afirma o secretário de Estado não lhe dá razão porque as injustiças a que se referiu não se enquadram naquilo que o Pacheco Pereira escreveu, ou melhor só com um relativismo muito grande se pode achar que se estar a falar do mesmo.

Para que fique mais claro quero dizer-lhe que acho que o concurso para professor titular um processo conduzido com uma incompetência gritante e que parte de princípios e pressupostos com os quais discordo, mas não por pelos motivos que aparecem agora nos media. O que este concurso fez foi, na generalidade, manter tudo rigorosamente na mesma, isto é, manteve toda uma hierarquia baseada não em critérios de mérito mas apenas na antiguidade. Quando por “acidente” isto não funcionou pretende-se repor a “justiça” deixando tudo como estava antes. Assim sendo não me parece que seja argumentando como o Pacheco Pereira o fez que se põe em causa a “justiça” deste concurso.

(Cândido Pereira)

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Tenham santa paciência, mas chamemos as coisas pelos nomes! Por que razão se insiste em chamar “concurso” àquela coisa inventada pelos nossos governantes para poupar uns trocados fazendo passar a falsa ideia (amplificada pelos comentadores de serviço)de que, assim, cuidavam da “qualidade no ensino”? Tratou-se, isso sim, de um sorteio. Com critérios bizarros, gratuitos, tontos, é certo, mas sorteio. Concurso é algo de completamente diferente.

Claro que o pudor e a honestidade intelectual são atitudes arcaicas, impecilhos nesta selva onde se deve salvar quem puder. Mas, caramba, haja algum rigor terminológico! E o que se promoveu com este sorteio? A injustiça de pôr em pé de igualdade professores recém-chegados ao 8º escalão (por via académica) e professores que já estariam no 10º em condições normais (ainda que com doutoramento); que privilegia quem está no 8º escalão em prejuízo de quem está no 10º; que atribui os mesmos pontos a quem teve sete turmas de vinte e seis alunos e a quem teve apenas uma turma de dez; que considera que o trabalho de direcção e coordenação realizado durante largos anos, mas antes de 99/00, é lixo se comparado com uns fictícios cargos de “coordenação (?) de departamento”, “representante na
assembleia de escola” com que muita gente foi brindada (agraciada, aliás, posto que até reduzia na componente lectiva sem descontar na pontuação desse item)após essa data; etc. Pois, “o povo é sereno”; pena que os professores e seus representantes,
aceitando tudo isto, sejam ridículos.

Nicolau Marques

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