ABRUPTO

30.9.07


A CULTURA "OFICIAL" DA UNIÃO EUROPEIA

Forum Cultural
A reunião em Lisboa do Fórum Cultural para a Europa foi mais um passo para definir uma política da União Europeia da "cultura", ou seja, como hoje se diz em burocratês, definir uma "agenda para a cultura". A seu tempo, como é habitual na UE, as "agendas" transformar-se-ão em "agências", embriões de ministérios europeus. No caso da "cultura", isso deve corresponder à institucionalização do modelo francês Malraux-Lang como norma europeia de "cultura". É natural que assim seja, porque os países mais dirigistas em matéria de cultura, França, Portugal, Bélgica, Espanha, adoptaram-no há muito em detrimento do modelo anglo-saxónico, menos intervencionista.

É natural que os governos, desde a direita à esquerda, dos socialistas ao PPE, estimem esse modelo construído para a glória da França de De Gaulle e Mitterrand, e que assenta na utilização da "cultura" como mecanismo de propaganda do poder, com a enorme vantagem de usar como instrumento uma realidade considerada intangível, intocável e aparentemente incontroversa, eficaz por isso mesmo. Este modelo tem duas consequências, ambas com muito "boa imprensa" e inúmeros e activos defensores com fácil acesso aos media. Uma é criar um establishment cultural dependente do Estado, muito para além da gestão patrimonial, com uma rede de "casas de cultura", animadores, agentes, produtores, "artistas", "trabalhadores" do cinema, do teatro, do circo, das marionetes, da "animação de rua", etc., etc. e toda uma "economia" à sua volta. Outra, e igualmente importante nos tempos que correm, é, através desses agentes, definir uma versão liofilizada politicamente da "cultura europeia" conforme com os paradigmas da UE.

A lógica dessa "economia" fortemente subsidiada não será a prazo muito diferente da "política agrícola comum", de quem toma, mesmo sem o saber, a linguagem que serve para o trigo, a manteiga e as batatas. A lógica é a protecção do emprego em nome da identidade "cultural" da Europa e, a nível mais vasto, o proteccionismo dos mercados europeus dos produtos alienígenas, em particular essa sinistra produção vinda de Hollywood de filmes populares que ameaçam matar a "cultura europeia". Do mesmo modo que os tenebrosos OGM servem de pretexto para proteger os agricultores principescamente subsidiados pela PAC da competição dos produtos agrícolas americanos, a "agenda cultural europeia" deve proteger uma miríade de produtos sem público e de qualidade duvidosa, subsidiados pelos contribuintes europeus das multidões que querem ver A Guerra das Estrelas. A reunião de Lisboa quer mais dinheiro para esta função.

http://www.arqueologos.org/IMG/jpg/128-s-sofia5.jpgO segundo aspecto, o de definir, por inclusão e exclusão, a "cultura europeia", é mais complicado e mexe em muito mais do que a economia. Tornar "europeia" a cultura das nações da Europa é uma tarefa difícil de levar a cabo, não muito diferente da de fazer um manual de "história europeia" que sirva de norma educativa nas escolas da Europa, também desejado pelos eurocratas. O problema é que, entendida nos seus genuínos factores de "unidade", a cultura europeia está bem longe de ser a versão iluminista, "progressista" e multicultural que a UE precisa para legitimar a sua cosmovisão olímpica. Como se viu com a discussão do Preâmbulo da defunta Constituição europeia, a definição de uma "cultura europeia", se for coerente com a história identitária da Europa (e não há outra, nem se decreta a identidade), ou está em choque com o islão, ou dá origem a sucessivas falsificações históricas para a moldar ao "politicamente correcto". Claro que este problema só existe, quando se quer ter uma "cultura" oficial que sirva uma "agenda".

É verdade que há uma herança greco-latina como factor de unidade, mas não se pode dar o salto do século de Augusto - a Roma que a UE gosta - para as Luzes - a filosofia que a UE gosta -, porque foi exactamente neste intervalo que a Europa se fez e essa Europa foi feita por uma religião que veio do Oriente, o cristianismo. Paulo trouxe o cristianismo do mundo dos judeus para o dos gentios, o que significou primeiro para os gregos e a filosofia grega, e depois para os romanos, para o direito romano. Desde que Constantino fez do cristianismo a religião do império, da Irlanda à Moscóvia, foi a religião que fez a Europa e essa religião defrontou desde cedo uma religião combatente, o islão.

The image “http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/6/65/The_Battle_of_Lepanto_by_Paolo_Veronese.jpeg/250px-The_Battle_of_Lepanto_by_Paolo_Veronese.jpeg” cannot be displayed, because it contains errors.Se o factor religioso na identidade europeia parece atenuado, isso se deve a um conjunto de factores que prolongam, mais do que se pensa, a "guerra" que antes se fazia nos mares de Lepanto (ao lado Nossa Senhora de Lepanto de Veronese) ou nos arredores de Viena. Na verdade, o crescimento da descrença, o imperialismo e o colonialismo, e a decadência do império otomano apagaram a fractura pela religião, embora na realidade a tivessem apenas mudado - ou seja, o cristianismo só deixou de ser um factor forte de identidade da "cultura europeia" quando o islão perdeu o poder militar, abrindo caminho dentro de si a ideias oriundas da Europa, como o nacionalismo (com os "jovens turcos" e Atatürk), ou o "socialismo pan-árabe" (de Nasser, Assad e Saddam Hussein). Mas, como se vê, todas essas ideias, ocidentais na sua génese, estão em crise com o ascenso do islão fundamentalista. Indo ainda mais longe, uma parte do conflito que opõe a Europa ao islão, como seja a necessidade da secularização do Estado, a condição feminina, ou a valorização da liberdade religiosa, são frutos da história europeia que incorporam a capacidade de instituições como a Igreja coexistirem com um mundo laico.

Ora este interregno dos factores da identidade clássica da Europa, que leva os burocratas europeus a acreditarem no sucesso do "multiculturalismo", está a acabar pelo retorno de um islão combatente e fundamentalista. Por tudo isto, a tentativa de fundar uma "agenda cultural" inócua só pode ser feita por exclusão, com a mesma atitude que levou a UNESCO a não querer publicar a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, porque não correspondia ao "diálogo de civilizações" mítico da culpa do homem branco.

(No Público de 29 de setembro de 2007.)

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