ABRUPTO

5.3.07


PENSAR OS JORNAIS - 3

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(Devido à sua extensão o artigo não pode ser publicado integralmente no jornal. As partes em vermelho foram cortadas e são aqui repostas.)
Embora não haja receitas milagrosas e a actual situação da chamada "imprensa de referência" em Portugal seja má por razões comuns a toda a imprensa deste tipo e por problemas portugueses, essencialmente ligados à pequena dimensão do mercado, é possível identificar caminhos que, a serem seguidos, melhorariam a situação. À partida, o problema fundamental para se avançar neste caminho é que os jornais já existem e foram criados para outro modelo, com redacções tradicionais que muito dificilmente se alteram sem mudanças drásticas. Seria muito mais simples começar de novo, do zero, criando um novo tipo de jornal de "referência" de raiz, um modelo cuja hibridez se devesse apenas às impossibilidades tecnológicas do presente e não à necessidade de manter o tamanho e composição das redacções actuais. O problema dos jornais actualmente existentes, caso do Público e do Diário de Notícias, é que, devido ao lastro do passado, tem todos os problemas genéricos da crise da imprensa em papel e mais os que advêm da enorme dificuldade de se adaptarem para a transição, para os anos de espera entre o papel e o papel electrónico.

Por isso, parece-me uma solução segura e certa, e, no caso português de escasso mercado, ainda mais segura e certa, que os jornais de "referência" têm de ser muito mais pequenos, mais compactos, mais especializados, menos generalistas, comunicando de forma próxima com outros media, como a televisão e a rede, explorando todas as sinergias, com um conteúdo com identidade própria, resultado de um trabalho jornalístico único. Serão mais parecidos com os semanários e bastante diferentes entre si. Não podem contar com públicos de muitas dezenas de milhares (em Portugal), mas têm de ter uma relação económica sustentável com públicos mais escassos, mas muito mais influentes em toda a sociedade e que estão dispostos a pagar mais. Essa influência trará publicidade, mais do que a "audiência" da venda em banca, mas exige padrões muito qualificados de jornalismo. É como se, mal comparado, se abandonasse a tentativa de fazer televisão generalista para fazer um canal por cabo, a SIC Notícias por exemplo.

Um dos obstáculos a que isto aconteça encontra-se nos próprios jornais actuais, com redacções muito grandes, com vícios territoriais, com dificuldades em ter verdadeira edição sem prémio nem sanção, sem controlos internos, renitentes à verificação de qualidade. Em redacções deste tipo, as restrições de custos têm efeitos devastadores na quebra de qualidade porque o dinamismo é escasso à partida. Do mesmo modo, a introdução de critérios de exigência internos (como se verifica já hoje com a actuação dos provedores) gera grande conflitualidade. Tamanho e mediocridade sempre foram mortíferos para jornais que se pretendem de "referência", só que agora são factores decisivos de sobrevivência

Hoje, um jornal vive numa ecologia muito mais crítica e num escrutínio permanente e público. Os blogues alargaram o campo comunicacional e tornaram inevitável o escrutínio da imprensa escrita, que até há uns anos não existia de todo. Mesmo quando não fornecem essa crítica de qualidade, tornaram a reflexão sobre os jornais inevitável e inescapável. Tornaram difícil manter os jornalistas resguardados num mundo próprio, vivendo em grupo, e "pensando" em grupo, em pack, falando quase que exclusivamente uns com os outros, reagindo corporativamente a todas as críticas, exibindo nos jornais, sem sanção, a sua falta de experiência, de formação e, acima de tudo, de imaginação, deixando o mundo correr ao seu lado sem o ver, repetindo de jornal para jornal, as mesmas notícias, as mesmas palavras, a mesma maneira de ver as coisas, uma casuística superficial que só tem paralelo em Portugal com o mundo político, que é aquele que cada vez é mais próximo do dos jornais e vice-versa.

Há excepções, e é tão má a regra que essas excepções brilham de evidência. Matérias como a Europa, Timor, sondagens, corrupção, são exemplos de casos em que há jornalistas altamente qualificados nos jornais portugueses e que têm um grau de especialização que não se compadece com exercícios amadorísticos num jornal de "referência". O grau de exigência subiu e muito e a competição com os novos media valoriza a especificidade da escrita, da reportagem, da investigação, que sobrevivem bem em papel, muito melhor do que as notícias em tempo real. São jornalistas que conhecem as suas matérias, lêem o que se publica sobre elas, artigos e livros, conhecem os protagonistas, têm fontes altamente colocadas, e, quando escrevem, tem autoridade. Um jornal "de referência" só sobrevive se assentar neste tipo de jornalistas. Eles é que são o penhor da "referência" e é com eles que se pode construir uma redacção compacta, que possa ser um centro de tratamento e edição de informação, que actua organizando, procurando, editando e "escrevendo" a partir de muitos inputs do exterior, quer sobre a forma de contribuições externas (não há razão nenhuma para se utilizarem crescentemente "produções" externas, como acontece nas televisões) quer usando os novos recursos daquilo que é chamado "jornalismo dos cidadãos".

O que esta redacção compacta deve fazer é moldar o fluxo de informação ao trabalho de mediação típico do jornalista e à identidade do jornal, mas cada vez mais é suposto que o facto de trabalharem para o "papel" não deve esquecer que o "papel" e o jornal em linha não devem ser apenas complementares, mas pensados em conjunto como um único produto. Por exemplo, parece-me um erro quer menosprezar a edição em linha quer assentar a edição em linha na edição em papel. É a edição em linha que tem futuro, não a de papel, e o fluxo de informação é o mais importante "material" de qualquer órgão de comunicação.

Hoje, esse fluxo tende a ter actualidade, e "tempo real" apenas na rádio, na televisão e na rede. Mas as "sinergias" de que muito se fala hoje para os modelos de negócio na comunicação deviam ser em primeiro lugar sinergias de informação porque a prazo, rádio, televisão, rede e papel esbaterão as distinções entre meios especializados. Jornalistas com os novos meios digitais ao seu dispor podem gravar, filmar e fotografar. E o jornal deve poder utilizar toda a massa de informação que obtenha, colocando em linha toda a que não servir para colocar no papel, ou aquela que não pode ser colocada em papel. Desde já.

Um exemplo recente mostra como as redacções de hoje não actuam no sentido de maximizar os instrumentos que tem ao seu dispor, valorizando ao mesmo tempo a edição em linha e a de papel. Esse exemplo é o do terramoto de há dias, um caso típico de um evento inesperado, uma notícia em estado puro. Ocorrido o terramoto, que ainda por cima não é um facto privado, um jornal devia de imediato começar a conduzir toda a informação em linha, criando um foco de interesse, de “leitura”, que corresponda a uma necessidade real de informação por parte do público. O efeito do “directo” é muito poderoso e de imediato começam a aparecer testemunhos e, se as houver, imagens e filmes. Esse material pode de imediato ser sujeito a uma edição rápida e conforme a sua natureza colocado em linha. A massa de informação obtida das pessoas (e neste sentido os testemunhos editados podem ser considerados peças de “jornalismo de cidadão”), aliada ao trabalho da redacção em obter informação qualificada, de especialistas em sismologia, técnicos e responsáveis pela protecção civil, permite um trabalho muito mais qualificado e economias de escala. Isto significa uma redacção a mover-se à velocidade dos eventos, com equipas em linha e outras a preparar a edição em papel, acompanhando o trabalho em linha, que pode identificar com muito mais rigor as deficiências da prevenção (telefones de emergência que não são atendidos como deviam, sítios na Rede que vão abaixo, ignorância de bombeiros quanto ao que fazerem, pânico dos responsáveis, falta de treino, etc,) Isto significa também, como é óbvio que o trabalho num jornal dura 24 horas e que a tendência para se fecharem os jornais cada vez mais cedo, os prejudica gravemente.

Muito mais poderia ser dito, seguindo o modelo de tentar aproximar o mais possível o jornal de hoje das tendências de futuro que já podem ser identificadas, mas não cabe aqui. Reconheço que há outras maneiras de colocar a questão, mas trata-se apenas de um exercício de análise, nada mais. A realidade é sempre muito mais complicada.

(Parcialmente publicado no Público de 3 de Março de 2007)

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