Muito me estranha, ou talvez não, que não tenha havido um jornalista que tivesse feito a pergunta "quem paga'" a nenhum membro da coligação, nem quando da cornucópia da abundância que correu no ano eleitoral, nem quando o PSD-CDS aceitaram todas aquelas medidas do PS no documento "facilitador", nem no programa de governo chumbado na Assembleia. A pergunta é só feita a um lado, o que é já beneficiar o outro.
No "risco", como para aí se diz, de "reversão" das medidas do governo da troika, há uma que é a mais importante do que todas as outras. Não pensem que a direita está muito preocupada com o défice ou a dívida, apesar da gritaria dúplice (umas vezes está-se a dar tudo e vem aí um novo resgate, outras vezes, veja-se Portas, não se está a dar o que eles dariam). A preocupação verdadeira é com a legislação laboral e o que lhe é anexo.
E não é, também não se enganem, com medo da CGTP. É com medo de que se modere o desequilíbrio social ocorrido nestes últimos anos da troika entre trabalhadores e patronato. A legislação laboral destina-se exactamente a criar factores de equilíbrio entre duas partes com um poder muito desigual. A alteração da legislação laboral nestes últimos anos, - e esta foi a grande traição da UGT e do silêncio do PS segurista, - acentuou esse desequilibro e abriu a porta ao desemprego, ao abaixamento acentuado de salários, logo ao aumento da pobreza mesmo de quem tem emprego, e à precariedade.
Pedro Ferraz da Costa foi dizer ao Presidente, com imenso enfado, que vinha aí uma "perspectiva negra", a da "política estafada do consumo interno". É que, ainda por cima, os que consomem não são as pessoas certas, que sabem comprar nas lojas gourmet, frequentar os sítios selectos, vestir com as marcas devidas, sem ostentação, mas sóbrios como um lorde inglês. É de facto um aborrecimento ver feios, porcos e maus a terem mais uns euros para consumir...
Se a TAP está a dias de não ter gasolina para os aviões e dinheiro para pagar salários, o que não acredito porque já vi usar muitas vezes por este governo argumentos ad terrorem deste tipo para justificar fazer as enormidades que quer, só pode ser por duas razões: ou foi pessimamente gerida nos últimos meses com o beneplácito governamental, ou foi deliberadamente deixada cair no caos para justificar a estranha pressa governamental para a privatizar.
Não é nada de novo, - foi o que foi feito com os Estaleiros de Viana, para logo a seguir surgirem miraculosas encomendas de navios do próprio estado agora feitas aos privados.
Ainda há muita gente do centro-esquerda e da esquerda que não percebeu com quem se está a meter.
Para quem tinha dúvidas sobre a fusão profunda entre os interesses económicos com o governo PSD-CDS, ocorrida nestes últimos anos, muito para além das coreografias e cortejos atrás de Sócrates, veja-se o comportamento político das confederações patronais sem ambiguidades, sem hesitações, sem consideração pela democracia, mostrando-nos o seu enorme amor pelo governo Passos-Portas, e dizendo-nos que só eles podem governar e só a eles é permitido governar. O processo de radicalização à direita passa por aqui.
Sobre os números catastrofistas que a comunicação social repete sobre o impacto das medidas dos acordos PS-PCP-BE, não seria bom saber qual a credibilidade de quem está a injectar estes números ou o seu interesse próprio nessas contas, ou seja, não seria exigido que nos dessem as fontes? É que alguns são tão evidentemente martelados que não é desculpável que se publiquem sem se saber como se chegou lá e quem fez essas contas.
Hoje esses números estão no centro do confronto político, não seria de ter toda a prudência?
(Um exemplo: acabei de ouvir uma descrição do cataclismo financeiro para o estado se a privatização da TAP for travada, mesmo na hipótese de não haver assinatura final, que, ou vem dos putativos compradores ou do anterior governo, ambos interessados nessa visão das coisas. Repito: não seria de verificar a veracidade contratual desses prejuízos, antes de funcionar como porta-voz de uma das partes? É que, pelos vistos, do modo como as coisas estão, deixou de se verificar nada nos órgãos de comunicação social.)
Será que aqueles que preferem estragar ainda mais Portugal, entregando-o, meses e meses, a um governo de gestão que não pode governar nada, apenas por raiva de poder haver outro, percebem a dimensão do conflito institucional que vão criar? É que se esquecem deste pequeno problema que é o facto do Parlamento não estar em gestão e poder, com certos limites, "governar"? E que a seguir vão ter que pedir ao Presidente para exercer uma espécie de veto contínuo a tudo que venha da Assembleia?
Quando é que os jornalistas, que seguem quase unanimemente a linha do "quem paga" como único critério para avaliar o mérito de qualquer medida e repetem à saciedade a mesma pergunta, se interrogam sobre se essa pergunta deve ser a primeira a ser feita, e se deve ser feita do modo que é feita, e se não há toda uma carga ideológica (e uma série de simplismos mais que rudimentares) nessa maneira de colocar a questão?
A resposta é sempre, nós os contribuintes. Portanto, alguém há-de pagar. Mas será que a pergunta nos diz alguma coisa sobre quem são os contribuintes que deviam pagar mais e não pagam, os que fogem aos impostos perante a complacência do estado, ou os que tem isenções fiscais que podem ser cortadas, ou as despesas que são feitas e não deviam ser feitas, ou sobre se há justiça distributiva em quem paga, ou até, se se justifica que se pague mais. Não, não nos diz nada.
É que se for assim, a pergunta "quem paga" quer dizer "isso não se deve fazer", não se devem aumentar salários, pensões, reformas, etc. E como a pergunta não é feita noutras circunstâncias, é uma pergunta profundamente viciada pela miserável ideologia que circula nos nossos dias e que muita gente interiorizou sem pensar no que está a dizer, ou porque é hostil a que se "pague" a alguns e nunca faz a pergunta a outros.
Ora eu conheço mil e um exemplos em que a pergunta "quem paga" tem todo o sentido de se fazer e ninguém a faz.
Um dos aspectos da radicalização à direita é o facto de muita gente preferir um governo de gestão que sabe ser muito prejudicial ao país, à existência de um governo de centro-esquerda como é o do PS.
Então os juros estão a baixar e a Bolsa a subir? Se eu fizer a mesmo tipo de "análises" que Passos e Portas fizeram e o formigueiro dos seus ecos "sociais" reproduzem, devo concluir que os "mercados" estão contentes com a queda do governo?
Portas diz que mudou a posição face à Europa em 1998. É falso. Concorri contra ele nas eleições ao Parlamento Europeu em 1999 e sei muito bem quais eram as posições do candidato da palmeta e da pêra-rocha. Será preciso republicar a propaganda do CDS-PP para lhe lembrar o que ele dizia do escudo, da "venda" de Portugal pelo PSD e pelo PS, e o ataque a Mário Soares, também candidato?
O discurso de Portas é o melhor exemplo do radicalismo que justifica classificar a coligação como de direita. É um discurso de vingança. Está bem e é conforme aos seus costumes.
Até Mário Centeno dá uma dura lição ao PAF. Sem ambiguidades. Tivesse o PS assumido um décimo desta linguagem clara sobre as falsidades do governo PSD-CDS e teria outros resultados eleitorais. Só agora perceberam.
O estúpido sectarismo à esquerda faz com que na Assembleia os grupos parlamentares do PS, BE e PCP não batam palmas às intervenções uns dos outros. Será que ainda não perceberam que estão metidos num caminho comum?
Qual foi o percursor deste acordo? O encontro da Aula Magna.
O "espírito" do encontro, patrocinado por Mário Soares, foi o único nestes últimos quatro anos que teve a presença do PS, do BE e do PCP. Foi o encontro do "contra", o mesmo "contra" que empurrou todos os partidos da esquerda a entenderem-se.