ABRUPTO

13.7.14


PONTO / CONTRAPONTO
  aos domingos às 20 horas na SICN.
  Se o caos do futebol não lhe alterar mais uma vez o horário.

Tema: 


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CARTAS PORTUGUESAS A LUDWIG PAN, GEÓLOGO E AGRIMENSOR NA AUSTRÁLIA

(As duas primeiras aqui.)


 3ª CARTA

Meu caro Ludwig Pan, Herr Professor nas artes da geologia, à procura do ouro na Austrália.

Obrigado pela tua carta. Ver o céu sem tecto e sem luz deve-te animar os sentimentos filosóficos. A Kant animava, e tu estudaste Kant no Liceu e bastante a sério. Costumes germânicos. Mas, mais prosaicamente, penalizas-te pelo atraso da resposta, e dizes que me envias esta carta de mula, do teu acampamento até ao posto de civilização mais próximo. Nisso deves sentir-te um émulo da Al-Qaida que não usava telefones, mas muares. Passons. 

Não sei, meu caro Pan, se já dormes à aborígene, no chão com um dingo ao lado, mas olha que por cá nem um exército de dingos faz a função protectora. Eles bem podem morder, mas como é tudo de plasticina e chewing gum fica sempre na mesma. E, imagina, se os cães ficam furiosos com a ineficácia da mordida, o que se passa com os donos. Por cá, o poder é de aço no seu centro mas tem metros de plástico, plasticina, gelatina e pastilha elástica à volta. Pode ser até que lá dentro seja de barro e cair quando se conseguir cavar um túnel, mas os metros de coisas dúcteis e moles à volta protegem-no. A má comunicação social é um dessas barreiras moles. A da economia é mestra do culto da inevitabilidade, já fez o destino do país para os próximos trinta anos e não há volta a dar. Dizem eles. Mas vão ver tanta volta, para ao bem e para o mal…

A outra, a generalista, salvo raras excepções, come com imensa facilidade o que se lhe põe no prato. Lembras-te das privatizações? Era tudo um modelo de transparência, até quando se começaram a saber as coisas, inside trading, rendas acordadas por um governo que privatizava para “libertar” a economia, transumância de cadeiras entre o poder de cá e poder de lá, e sempre os mesmos facilitadores. Os mesmos de hoje, muito no activo, mas cujo nome associado a estes negócios toda a gente conhece e ninguém coloca em letra de imprensa. Se a comunicação social aprendesse, seria mais atenta com os elogios do dia seguinte, os que deixam uma primeira impressão, a mais valiosa como sabes. 

E continuam a acreditar em todas as histórias da carochinha e a gerar novas primeiras impressões. Vê lá tu, que andaram dias a fio a elogiar a atitude viril do Primeiro-ministro que não “usou” o banco público para salvar os Espírito Santo! Aquilo é que foi uma “mudança”, temos um governo que não obedece à banca e não faz os fretes aos de sempre. A fonte de tão gloriosa atitude veio naturalmente do governo, usando do elogio em boca própria. Primeira impressão, a que custa mais a passar.

Mas, mesmo que o quisesse, podia fazê-lo? A troika, essa proibidora tenaz, deixava? Havia dinheiro? Não eram “auxílios de estado” disfarçados, proibidos por Bruxelas? Ou verdadeiramente tinha outros planos? Não se pergunta o que se devia perguntar em tempo devido. Lá se ajuda o infractor. A próxima vez que não levantar um tronco de 200 quilos vou por na imprensa que é moralmente inaceitável e de uma desigualdade flagrante, levantar troncos desse peso porque isso amesquinha os fracos. E eu estou sempre do lado dos fracos e por isso tenho muito mérito em não levantar o tronco. 

E não te parece estranho, que aqueles que “nunca” quiseram interferir, recebam o grande prémio: o “banco do regime” que passou para o PSD? Foi certamente por acaso. Devia pedir-te conselho a ti, que, como alemão, oscilas às segundas-feiras em achar que a ordem do mundo é mística e indecifrável, inscrita numas runas antigas, e que um nevoeiro ancestral se levanta do lado do Reno ou numa densa floresta para encantar tragicamente os humanos, tu romântico às segundas-feiras, passas na terça a ser um cientista que acha que a ordem do mundo está inscrita numa rígida gramática qualquer, seja a de Hegel ou a de Marx e tudo se explica por uma causa e um efeito, pela afirmação e pela negação, e pela “acção reciproca”... 

Diz-me lá como devo interpretar como é que os mestres da inacção governamental acabam por ter uma tão completa vitória? Será que são como os mestres do arco Zen que só acertam no alvo quando não olham para ele? 

Deixa lá. São destinos. Tu procuras ouro no meio do nada, e eu vivo no meio da pirite. Destinos. 

Um abraço do teu amigo que não é Pan.

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A DIREITA DEIXOU DE SER PATRIÓTICA (1)


À partida, faço uma prevenção e uma precisão iniciais. A prevenção é que a designação de “direita” e a dualidade “direita/esquerda” não são nos dias de hoje termos muito precisos e úteis do ponto de vista analítico, mas uso aqui o termo “direita” por facilidade e comodidade, num mero sentido descritivo. Designa essencialmente o PSD e o CDS, mas, e aqui já se revela por que razão o termo é ambíguo, podia-se incluir também o PS nesta matéria.

 A precisão é que uso o termo “patriotismo” num sentido vago de um sentimento comum de partilha a uma mesma comunidade com identidade histórica e nacional, linguística, cultural, territorial, que define fronteiras e interesses comuns e que pressupõe que esses interesses têm que ser defendidos num quadro de competição ou conflitualidade com outros interesses. É o sentimento de risco permanente, logo de defesa activa, dos interesses de uma comunidade nacional, que é o elemento dinâmico daquilo que se possa chamar patriotismo. Penso que isto chega para não entrar em grandes discussões identitárias.

 A chave deste processo de abandono da noção de Pátria encontra-se no PSD, porque é aí que há uma significativa mudança. O CDS segue por arrasto, embora no caso do PSD a crise patriótica seja a da sua componente partidária e no CDS seja mais institucional e do Estado. Mas a mudança política centra-se no PSD (e no PS), acompanhando a evolução do “internacionalismo” clássico da tradição comunista para um “europeísmo”, muito evidente no Livre e em parte do Bloco. Por uma daquelas ironias em que a história é fértil, o PCP, perdida a referência internacionalista da URSS e do comunismo mundial, acaba por ser nos dias de hoje o mais patriótico dos partidos e aquele que mais resiste à deslocação dos centros de poder nacionais para o quadro europeu. Fê-lo e fá-lo por razões políticas instrumentais, mas não só. Na história do PCP, o quadro nacional sempre esteve presente na ideologia e na política e o que é muito importante, no imaginário da “indústria nacional”, do “pão português”, muitas vezes o reverso do “trigo” das Campanhas do Trigo do Estado Novo. A questão é que nessa tradição também estava o PSD e deixou de estar.

 As mudanças do PSD com a ascensão ao poder de um aparelho profissionalizado e de carreira, com origem nas “jotas”, e que no poder, e com o poder, atrai alguns jovens intelectuais ultraconservadores, são muito relevantes. O PSD foi na sua origem um partido que foi buscar ao socialismo moderado, à social-democracia, à doutrina social da Igreja, a sua âncora para evitar colocar-se à direita do espectro político, onde não queria que o colocassem, e onde não queria estar. Esta intenção é tão evidente nos seus fundadores, que nem vale a pena perder muito tempo a nomeá-la. Não foi instrumental para acompanhar a viragem à esquerda do sistema político pós-ditadura, como hoje se diz, podendo ser deitada pela borda fora logo que a situação mudasse. Foi substancial e de fundo e impregnou o PSD de uma tradição, de uma linguagem e uma simbólica, que ainda hoje atrapalham os seus próceres “neoliberais”.

 Mas o nascente PPD não se teria tornado popular se se ficasse apenas por esta estratégia de afirmação ideológica, com origem em profissionais liberais e intelectuais, e não fosse mergulhar no tecido social português profundo, onde encontrou uma identidade que fez a sua história. É por isso que o programa identitário do PSD é o da sua génese no PPD inicial e feito por Sá Carneiro e é o “programa não escrito”, a sua história. E aí outras realidades emergiram. Duas são do “contra” e uma é do “pró”.

 As do “contra” são fáceis de identificar: uma é o anticomunismo, outra é a hostilidade à Maçonaria. Ambas têm ambiguidades, principalmente a segunda, dado que houve sempre mações no PSD, a começar por uma parte do republicanismo e oposicionismo histórico mais conservador que aderiu ao partido, a nível nacional e local. Mas se havia mações, da Maçonaria tradicional do Grande Oriente Lusitano, essa era uma opção individual, mantida com uma enorme discrição e que em nada marcava o rank and file partidário, que detestava a Maçonaria.

 Esta é uma grande diferença com a actualidade, em que uma parte importante da direcção política e do aparelho do partido pertence à Maçonaria, e de forma muito significativa às novas obediências maçónicas surgidas nas últimas décadas. A Loja Mozart é apenas um caso, unindo o líder parlamentar do PSD, outros membros do PSD, com o dono da Ongoing, e antigos e actuais elementos dos serviços de informação, envolvidos num conjunto de escândalos públicos. Mas distritais inteiras do PSD são constituídas por membros das novas maçonarias, que funcionam como estrutura horizontal para criar redes de poder e de negócios. Quanto à componente antimaçónica do PSD estamos conversados. Está defunta.

 Mesmo a componente anticomunista do PSD foi-se alterando na actual direcção para uma componente anti-socialista, mais do que anticomunista. A ideologia confusa e híbrida que caracteriza os actuais dirigentes do PSD tem sido descrita como “liberal” ou “neoliberal”. Tenho-me sempre manifestado contra esta classificação que dá demasiada dignidade ideológica a uma mescla de ideias e posições que nada têm de liberal. Se quisermos fazer a distinção sem sentido entre “liberalismo económico” e liberalismo político, rapidamente compreenderíamos que o “liberalismo económico”, a que correntemente se chama “neoliberalismo”, não é liberalismo. O liberalismo, com o seu amor pela liberdade, a sua valorização do indivíduo, a percepção da relação entre a propriedade e a liberdade, a pulsão pela privacidade e pelo direito de cada um definir os objectivos da sua vida, tem muito pouco a ver com a redução do homem ao “homo economicus”, a ditadura estatal do fisco, a burocratização de toda a actividade social para aumentar o controlo do Estado, o desrespeito pelo primado da lei, o encosto aos mais fortes e culpabilização dos mais fracos.

 Neste contexto, a apologia do “empreendedorismo”, de uma “economia” onde se fala obsessivamente de empresas e nunca se nomeia os trabalhadores, esta recusa da consolidação de direitos sociais e do melhorismo como objectivo de uma política do bem comum, precisa de um anti-socialismo como alvo, até para exorcizar as origens do próprio PSD. O anti-socialismo é por isso hoje mais corrente nos círculos do poder, porque ajuda a criar um polo antinómico no qual se inclui a ideia de estado social, de investimento público como panaceia económica, do “despesismo do estado”, e de qualquer ideia de intervencionismo estatal nos negócios, mais do que nas empresas.

 Ficamos agora com o “pró” que fazia parte da identidade colectiva do PSD (e não só): o sentimento patriótico do “mais português dos partidos portugueses”. É exactamente aqui que existe por parte do actual poder no PSD, um curso que é objectivamente antipatriótico e que assenta em dois processos interligados: a desvalorização das Forças Armadas, tratadas como fardo orçamental que seria vantajoso alijar caso houvesse oportunidade, e a transmissão de soberania nacional para o estrangeiro, a retirada do poder do Parlamento português para definir os orçamentos nacionais, a desvalorização das eleições e da escolha entre diferentes opções com a ditadura da “inevitabilidade” imposta por credores e Bruxelas, a subordinação do Governo e Parlamento nacionais a uma governação europeia definida pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu, assente em “directivas comunitárias”, a defesa da caducidade da Constituição (e do poder do Tribunal Constitucional) face à legislação constitucional “não escrita” do direito comunitário, etc., etc.

Resumindo e concluindo, visto que os detalhes ficam para o próximo artigo: a subordinação, à revelia da democracia, da nação e da pátria, da comunidade dos portugueses, a uma estrutura de poder que foi “comunitária” e é hoje antidemocrática, hierárquica e imperial e que se chama União Europeia, subordinada aos interesses nacionais da Alemanha. E o principal executante, teorizador, legitimador, deste processo meio escondido, meio às claras, tem sido o PSD, junto com o CDS e o PS. É por isso que a direita deixou de ser patriótica para ser internacionalista, na versão europeísta.

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© José Pacheco Pereira
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