ABRUPTO

4.5.13


O DISCURSO



A única pessoa que vi defender o discurso do Presidente da República do ponto de vista estratégico (para o PSD e CDS, a questão é táctica) foi Joaquim Aguiar, ele próprio um conselheiro de vários presidentes. Segundo ele, e espero ter percebido o que nem sempre é fácil, o discurso de Cavaco Silva foi o único apropriado, o único que exibia compreensão e "contemporaneidade" (não foi esta a palavra, mas era este o sentido, o de adequação com os tempos) contrastando com todos os outros, que eram arcaicos. A ideia é que vivemos num tempo DD, Depois da Dívida, e o discurso do Presidente era o único que o compreendia, enquanto todos os outros, assim como as críticas ao discurso presidencial, eram AD, Antes da Dívida, um tempo que tinha acabado de vez. O Presidente percebia que o tempo AD tinha acabado, e os outros não, estavam presos num passado que nunca mais voltaria, logo, era ele que estava certo e não os seus críticos.

Cada um escolhe o Antes de Cristo ou o Depois de Cristo, ou, se quiser ser politicamente correcto, Common Era (CE)/Before the Common Era (BCE), ou o calendário muçulmano, ou qualquer outro, mas alguns economistas-políticos têm vindo a insistir neste AD/DD, mesmo que não lhe dêem este nome, como o corte fundamental do tempo de hoje. Para eles, há um mundo antes de 2008 e outro depois. Por detrás desta ruptura da continuidade do tempo, estão uma tese e uma ideologia. Mas, para eles, o que está a acontecer é tão natural como a gravidade puxar as coisas para baixo.


Penso que o que entusiasmou Joaquim Aguiar no discurso de Cavaco Silva foi a afirmação presidencial de que nada no processo político democrático, nem eleições, nem programas, nem opções livres, de partidos e pessoas, poderia pôr em causa a "sustentabilidade", que é outro nome para a prossecução ad infinitum da política da troika, através dos instrumentos combinados do Pacto Orçamental, da legislação sobre o enquadramento orçamental, do poder de veto de Bruxelas e do facto de "não haver ninguém para nos emprestar dinheiro". 


É este o mundo DD, e só os ingénuos, os ignorantes e os antiquados pensam que se pode escapar. Para os mais exaltados videntes do DD e os seus imitadores nos blogues, a milícia a preto e branco destas ideias, considera-se que o Estado de Direito, a Constituição, a democracia, são tudo coisas muito bonitas no papel, mas a "realidade" no mundo DD considera-as irrelevantes ou subordinadas à dura Dívida. Ou seja, com eleições ou sem elas, a política é a mesma, sejam quais forem os partidos e os políticos eleitos. E, apesar de o PS ter votado todos estes instrumentos de congelamento da política da troika, o Presidente suspeita, como Joaquim Aguiar, que Seguro não é propriamente o seu melhor e mais eficaz executor. Podia ser Vitorino ou Amado, seriam mais fiáveis, mas Seguro há-de ter sempre um pé dentro e outro fora, por isso, em "tempos de emergência", não serve. Por isso, não "adianta" fazer eleições que Seguro pode ganhar. É só tempo perdido.


Numa coisa estou de acordo com Aguiar, esta é uma questão crucial da vida das democracias ocidentais, tanto mais importante quanto uma parte importante da elite política europeia se rendeu a este pensamento e aos interesses que nele estão representados. Em particular, ela é a melhor expressão política de uma realidade que emergiu exactamente no tempo da ruptura AD/DD, a entrada plena do sector financeiro na co-governação das democracias. Como é o caso português, o Governo Passos Coelho co-governa o país com uma parte da banca, a começar pelo BES e a acabar nos "credores" supostamente representados pela troika. Não é de agora. A questão das PPP e dos swap mostra como as decisões político-económicas se tinham de há muito tornado reféns da banca, mas o grau de co-governação nunca tinha sido tão próximo, intenso e decisivo. Esta é uma novidade do tempo DD, um dos frutos da crise "tóxica" de 2008. 


Existe, porém, um problema que os economistas da escola do DD não conseguem ultrapassar: a sua incapacidade de perceber que estão a falar em economias em democracia, insisto economias-em-democracia, e, por isso, considerações sobre a dinâmica da sociedade (e o empobrecimento é hoje o principal mecanismo dinâmico), opiniões comuns, representação simbólica e real da justiça social, e opções de voto, são cruciais. Podem entender o que quiserem, mas sem eleitores para suportarem essas políticas, sem aliados fora do círculo fechado dos "sempre os mesmos", ou fora das partidocracias clientelares, as convulsões serão a regra social e eleitoral. É por isso que eles consideram, como todos os bons burocratas, que é uma maçada terem que aturar políticos e eleições, que só perturbam a lógica tão científica das decisões burocráticas. A democracia é, de facto, uma perturbação, um ruído, uma ineficácia gastadora, um ónus para a "sustentabilidade."


Eu sei que eles pensam que não há "economias-em-democracia", mas apenas economias, ou, como lhes chamam, a "realidade", mas não é verdade, nem em ditadura, quanto mais em democracia. Convencidos do mito cientista de que estão a "ajustar" o mundo à "realidade", baterão (como estão a bater) com a cabeça na realidade sem aspas. Claro que depois a culpa é do "povo", que é mau, é do Sul, demasiado católico e pouco protestante, que "não quer trabalhar", tem direitos a mais e "vícios históricos", etc. Estes mitos e lugares-comuns já se conhecem há muito, e os historiadores conhecem-nos ainda melhor. Deve ser por isso que saber História é tido como um desperdício para estes economistas. 


Apetece dizer-lhes, como Clinton a Bush, "é a sociedade, estúpido!", ou "é a democracia, estúpido!", quando se pensa a "sustentabilidade" apenas em termos de abstracção económica. Era por isso que, desde o início do memorando, aquilo que hoje se chama "consenso" (na verdade, compromissos e negociações), assim como uma consideração dos efeitos sociais pensada em termos de grupos sociais e do seu papel no conjunto da sociedade, eram tão importantes desde o primeiro dia, tanto como o controlo do défice. Esta ideia de "fases", primeiro actua-se "de emergência" contra o défice, estragando o que era bom e o que era mau, depois manifesta-se grande surpresa pelos efeitos e pela ineficácia da "emergência", e, por fim, desespero para os remediar, é uma receita para o desastre oriunda em má economia, mau conhecimento do país e fraca compreensão do que é a democracia. Vai-nos custar tantos milhares de milhões como as dívidas de Sócrates.


Não admira, por isso, que o resultado do discurso de Cavaco Silva tenha sido exactamente o contrário do pretendido: resultou no agravar da crise política, destruindo a função presidencial que, nos dias de hoje, era mais útil, a de moderador acima dos partidos, radicalizando a luta partidária e atirando-a para a nudez pura e dura do confronto. A prazo, com muito esforço, o Presidente talvez possa minimizar os efeitos do seu discurso, mas nunca mais poderá recuperar o papel que, sem se perceber muito bem porquê, deitou fora quando era mais necessário. 


Na verdade, o Presidente foi muito para além de um apoio táctico a um Governo de que não gosta particularmente. Repetiu também um discurso sobre a Europa que é sempre contraditório - pede-se à Europa que faça aquilo que por cá se diz que não se deve fazer -, mas isso não é novidade. Porém, o resto do discurso é estratégico, sobre a política, a democracia, as eleições a "inevitabilidade" da política da troika, a valorização dos "resultados" económicos em contraste com a mera enunciação dos efeitos sociais.
É por isso que um discurso como o do Presidente, em que elenca os efeitos negativos e valoriza os resultados "positivos", mostra a incapacidade deste discurso "economês" em perceber que os efeitos negativos não são apenas "enunciáveis", como uma espécie de danos colaterais que se lamentam, mas se pensam inevitáveis. Bem pelo contrário, é por causa deles que o "programa" vai falhar. São esses efeitos que vão tirar o ar à política que os ignora porque, enquanto se viver em democracia, as políticas vão a votos. O "programa" vai falhar, o "programa" é insustentável, porque desprezou e despreza os factores sociais, em detrimento de abstracções económicas, e pensou o país numa mecânica rudimentar de causa - efeito que é tão científico como o flogisto. 


Chamem Lavoisier como consultor para a presidência, que faz falta.

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© José Pacheco Pereira
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