ABRUPTO

31.3.13




ÓSCAR LOPES 

Não gosto de escrever nas ondas necrológicas, porque elas são hipócritas no pior sentido do termo: fazem uma vénia à morte, mas tratam o falecido como nunca o trataram em vida, quer porque o atacaram, quer porque o esqueceram. Agora que está morto, é sempre um poço de virtudes. 

Sucede que eu conheci e trabalhei com Óscar Lopes, em circunstâncias de alguma proximidade em momentos complicados da nossa história, os anos sessenta e setenta, em que esquerdistas e comunistas tinham uma relação difícil. Difícil é um eufemismo para não ir mais longe. Na então Editorial Inova partilhávamos duas secretárias coladas, uma em frente a outra, numa altura em que se estavam a preparar uma série de edições pioneiras de traduções de poesia mundial. Eugénio republicou as suas traduções de Lorca, Quintela, as de Rilke, Sena preparava a sua antologia de Arquíloco a Bashô, a primeira de dois volumes, havia prémios de cujo júri ambos pertencíamos, e eu tratava de organizar um volume de Vergílio Ferreira, que nunca saiu, mas que deu origem a uma correspondência entre mim e ele que permanece inédita. Eu e Óscar Lopes tínhamos também uma tarefa comum, alternávamos no velho Comércio do Porto, uma página de crítica a livros, no então afamado suplemento literário do jornal. 

Falávamos por isso bastante, ele velho estalinista, eu jovem esquerdista, sobre arte e literatura, livros e autores, mais do que de política, que não era coisa que se conversasse facilmente nesses anos. Óscar Lopes estava nessa altura a voltar a sua atenção para a lógica e para a matemática, como fundamento dos seus estudos de linguística, que culminaram numa série de pequenos estudos e na Gramática Simbólica do Português. Esta deslocação para a “cientificidade” não era alheia aos movimentos ideológicos do seu tempo, em particular, o estruturalismo com a sua rejeição do impressionismo humanista, mesmo que “neo-realista”, e do biografismo, que tinham um papel na crítica literária. Óscar Lopes, cuja exposição ao tempo, mais do que abertura ao tempo, era visível na correspondência com António José Saraiva, estava entusiasmado com as suas novas “descobertas” e com o que estudava e aprendia ao ler os lógicos e os matemáticos. Associava a esse retorno à forma, um muito biográfico interesse pela música. 

Óscar Lopes era um homem pequeno, falava baixo, ouvia mal, e tinha uma gentileza de trato que se manifestava entre outras coisas num bem muito escasso nesses anos, a tolerância. Nos meios do comunismo portuense, na altura muito agressivo e completamente desabituado de ter que discutir alguma coisa muito menos a si próprio, marcado por figuras como Virgínia Moura, Óscar Lopes fazia a diferença porque falava, conversava e ouvia. Uma vez, conversando sobre os Três Seios de Novélia de Manuel da Silva Ramos, sublinhou uma divertida passagem erótica do livro e rindo-se disse-me, “eu já não sou de tempo destas coisas, sou muito estalinista, nessa altura não se escrevia assim”. E eu disse-lhe “ nessa altura não se podia escrever assim”. Riu-se de novo. O livro ganhou um prémio literário muito por iniciativa de Óscar Lopes, que sublinhou a sua adequação aos tempos de “1968”. 

Boa viagem e muita música.

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© José Pacheco Pereira
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