ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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9.3.13
O PEREGRINO
Muitos portugueses identificam-se como
católicos, muitos são mesmo crentes, e parte desses crentes é
praticante. Uma minoria pertence a várias instituições da Igreja, no
plano social, cultural e assistencial. Sem eles desabaria a frágil rede
que protege os mais pobres e fracos na sociedade portuguesa, e a que o
Estado dá cada vez menos e pior. Uma mais pequena minoria é militante
católica apostólica romana, em vários grupos "progressistas" e outros em
vários grupos "integristas". Estas classificações são muito grosseiras,
mas servem para o efeito.
Mas cada vez mais portugueses são
agnósticos ou, melhor ainda, indiferentes à experiência religiosa na sua
vida quotidiana, mesmo que ocasionalmente entrem numa igreja em
funerais, baptizados e casamentos. Um cada vez maior número de
portugueses faz a sua vida com considerável indiferença face à Igreja e
organiza-a em muitos aspectos em que a Igreja e religião tinham papel no
passado e hoje têm cada vez menos. Não baptiza os seus filhos, não se
casa pela Igreja, é hostil à moral sexual cristã, e vive como quer e lhe
apetece, sem ser afectado em nada pela instituição, a não ser quando
esta aparece associada a qualquer escândalo, como a pedofilia, e então
julga-a com ainda maior severidade, reconhecendo-se nessa reacção mais
próximo da Igreja do que desejaria e admite. Contradições, de que o
mundo é feito.
Nos últimos dias, foi impossível a todos não
observar os vários episódios do "espectáculo" papal, em parte
involuntário, noutra parte desejado. Uso aqui o termo sem especial
sentido pejorativo, que também o tem. Desde o momento da declaração de
renúncia, que o Papa fez em latim e que só uma jornalista e os
dignitários da Igreja que o acompanhavam perceberam porque conheciam a
velha língua morta da Igreja, até à sucessão de aparições, discursos e
mensagens, todos os passos e palavras daquele homem vestido de forma
única, de branco e vermelho, na janela do Vaticano, no carro branco de
nome ridículo, no helicóptero, a cuja passagem tocavam os sinos, uma
coisa moderna chamando uma coisa antiga, um mundo fortemente simbólico
que se tornou actual no ecrã por onde se vê o mundo, a televisão.
A
sua figura é a de um homem cansado e velho, "sem forças" para dirigir a
"barca petrina", e por isso o seu acto de renúncia foi visto como
contraditório com o sofrimento público, a revelação da doença e por
último da morte quase em directo, diante dos fiéis reunidos na Praça de
S. Pedro, de João Paulo II. Já o escrevi e repito, os dois Papas
sucessivos, cuja colaboração e estima foi intensa, não quiseram dizer
nada de contraditório entre si, mas apenas coisas diferentes: um, que a
velhice e a morte fazem parte da condição humana; outro, que não há
razões para o Papa não se retirar se entender que a Igreja precisa de
força e vitalidade para defrontar as suas dificuldades. Cada um
testemunha, a seu modo, a humanidade do papado, e por isso ambos
serviram a sua causa e a sua igreja.
Nos seus últimos dias de
Papa, Bento XVI apresentou-se diante de audiências globais como algo de
muito diferente do comum, como uma "estranheza", ou um "mistério" que
nos interpela. Desse ponto de vista, foi um sucesso "mediático" porque é
único: um homem alquebrado, mas com um sorriso poderoso, falando várias
línguas de um modo geral bastante bem, lendo textos simples mas densos,
cheios de história, onde os dois mil anos da Igreja se reflectem num
fio condutor que apela a muitas memórias da cultura ocidental e da
religiosidade. Mas, mais do que isso, um homem que sabemos ser um grande
intelectual, um produto da exigente cultura universitária alemã, mas
que se percebe ter fé, acreditar, e que, numa timidez evidente mas
segura, fala com Deus tratando-o por Tu.
O "espectáculo" papal dos
dias de hoje não converte os incréus, porque a sua incredulidade é mais
forte e mais funda, por boas e más razões, mas abre-os a uma certa
perplexidade, nalguns casos mesmo sedução, da e pela fé. Ver alguém que
acredita, como o Papa Bento XVI, agora Papa Emérito, de uma forma tão
gentil, sem aí ser frágil e "sem forças", faz muito para restaurar um
respeito pela espiritualidade, uma atenção ao "mistério" ao sentimento
do outro, mesmo que não restaure a fé, que é um "dom" e não depende
dele.
É por isso que este Papa fez muito mais pela Igreja do que
muitos cristãos pensam que fez, resultado de terem ficado órfãos em
Bento XVI da religiosidade afectiva de João Paulo II, daquela bondade de
pater que beijava a terra e peregrinava pelo mundo todo. Bento
XVI é uma outra espécie diferente de "peregrino", autoclassificação que
deu a si próprio na sua última declaração ainda Papa no seu belo
italiano de adopção: "Voi sapete che io non sono più Pontefice, sono
semplicemente un pellegrino che inizia l"ultima tappa del suo
pellegrinaggio in questa terra."
Para João Paulo II, cuja
acção é muito intimamente complementar da de Bento XVI e vice-versa, a
preocupação foi sempre reforçar a Igreja nas suas mais seguras fontes de
continuidade e influência: o cristianismo popular, mariano, orgânico,
"comunitário", como o era na sua Polónia natal, assegurando-lhe a
liberdade de culto, e a autonomia das suas instituições, em particular
as ligadas ao ensino. O seu olhar dirigia-se aos sítios onde o
cristianismo estava a crescer e a consolidar-se, em África, na América
Latina, na Ásia, a partir do povo comum, da religiosidade popular e
simples. Daí também o seu papel no combate ao comunismo onde participou
como inspirador e conspirador. O "Papa polaco", anticomunista, foi
sempre visto pelo Kremlin como um dos grandes problemas na fase final da
crise do sistema comunista, e um actor decisivo nessa queda.
Bento
XVI era diferente, pela sua carreira, pela sua acção intelectual, como
teólogo, pela sua acção como jovem consultor dos bispos alemães que
organizaram no Vaticano II a resistência ao poder da Cúria Romana, assim
como, mais tarde, como alto responsável na hierarquia da Igreja na
defesa da ortodoxia da doutrina. Este último papel colocou-o na mira dos
"progressistas" que o tinham como adversário capaz e duro, elevando o
debate intelectual, teológico, a níveis que apenas poucos, como era o
caso de Hans Kung, eram capazes de aceder. Mas Bento XVI, quer como
Joseph Ratzinger, quer como Papa, sabia muito bem que para defrontar a
competição com a descrença no mundo contemporâneo, era preciso resistir
ao "progressismo" que descaracterizava a Igreja, a tornava numa variante
profética do marxismo na "teologia da libertação", abrindo-a de forma
perversa a um mundo que se tinha feito contra ela e sem ela, e que
acabaria por a dissolver no "século" sem diferença. A resistência à
"modernidade", e foi o próprio Ratzinger que o lembrou, é mais moderna e
interpela mais a descrença, do que a contínua cedência ao "mundo"
secular, aos seus hábitos e costumes. E foi também por isso que, ao
associar o seu acto prosaico de renúncia ao papado a uma "peregrinação"
mística e de intensa religiosidade, apelou aos incréus, seus pares na
mesma tradição greco-latina da cultura ocidental que tanto prezava, e
fez muito mais pela "propaganda da fé" do que alguns dos seus pares mais
modernizadores reconhecem.
Usou o "espectáculo" para sair dele
para uma dimensão muito alheia ao nosso quotidiano vulgar, retomando o
sentido do seu nome de Papa, como o disse na sua última audiência do dia
27 de Fevereiro:
Boa viagem, peregrino.
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© José Pacheco Pereira
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