ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
|
2.3.13
LIBERDADE, ONDE ESTÁS? QUEM TE DEMORA?
Liberdade onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia Porque (triste de mim!), porque não raia Já na esfera de Lísia a tua aurora? Da santa redenção é vinda a Hora A esta parte do mundo, que desmaia. Oh!,venha... Oh!, venha e trémulo descaia Despotismo feroz, que nos devora! Eia! Acode ao mortal que, frio e mudo, Oculta o pátrio amor, torce a vontade, E em fingir, por temor, empenha estudo. Movam nossos grilhões tua piedade; Nosso númen tu és, e glória ,e tudo, Mãe do génio e prazer, ó Liberdade!
(Bocage)
Este artigo é um panfleto.
Não acrescenta nada de novo àquilo que digo há mais de dois anos, pelo
que não tem interesse mediático. Não é distanciado, nem racional, nem
equilibrado, nem paciente, nem tem um átomo da imensa gravitas de Estado
que enche a nossa vida pública no PS e no PSD, cheia daquilo a que já
chamei redondismo e pensamento balofo. Como vêem já disse isto tudo e
estou-me a repetir. Não é sequer um artigo feliz, que se faça com gosto e
prazer. Prescindia bem de o fazer para falar de outras coisas,
refrigérios da alma, como se dizia no passado, seja livros, seja o
Inverno, seja algum momento especial, uma descoberta de amador curioso,
uma coisa que se aprendeu, uma calmaria hegeliana do espírito, ou uma
negatividade divertida e sagaz.
Bem pelo contrário. Não ilumina,
não é feito pela curiosidade, é feito em nome da voz que não tem voz e
por isso tem muitos adjectivos e podia ser todo escrito em calão,
aqueles plebeísmos, grosserias e obscenidades que tem nos dias de hoje a
enorme vantagem de não conter hipocrisia, porque são palavras
inventadas contra a hipocrisia. Ao menos, vamos hoje usar o esplendor
das belas palavras do português contra o abastardamento da língua como
maneira de falarmos uns com os outros, de nos entendermos na
simplicidade do povo comum, ou na riqueza criativa de uma velha fala,
capaz de tudo se a deixarmos à solta, mas magoada e ferida pelo seu uso
para esconder vilezas e malfeitorias, e acima de tudo para esconder
arrogâncias ignorantes, que é a moeda falsa que para aí circula.
Pode
ser porque eu dou valor às palavras - uma sinistra manifestação da
condição suspeita de intelectual - que me repugna, enoja, irrita,
indigna, encanita, faz-me passar do sério, a sua sistemática violação
pelo governo. Violação, exactamente como as outras violações. Devia
haver uma lei não escrita para punir a violência feita com as palavras e
pelas palavras, como há com a violência doméstica, a violência contra
os mais fracos, o abuso do poder. Devia haver uma lei não escrita para
punir o envenenamento das palavras pela desfaçatez lampeira, a esperteza
saloia.
De novo, pela pecha de ser intelectual, - um estado
miserável nos dias de hoje, "treinador de bancada", "comentador",
"opinador", "achista", "inútil", "velho do restelo", "negativista", ou
qualquer outra variante das palavras com que hoje o poder e os seus
serviçais entendem diabolizar o debate público que não lhes convém - é
que me repugna, enoja, irrita, indigna, encanita, faz-me passar do
sério, a sistemática tentativa de nos enganar, de nos tomar por parvos,
de nos despachar com um qualquer truque verbal destinado a dizer que uma
coisa é diferente do que o que é, porque convém que não se perceba o
que é.
Os exemplos abundam. Por exemplo, chamar aos cortes
"poupanças", como se não fosse insultuoso para quem quer que seja ver a
sua vida ficar miserável por uma "poupança" virtuosa, cuja natural
bondade não pode ser atacada. Quem ousa ser contra poupanças? Pode-se
ser contra os despedimentos, contra a redução das despesas sociais,
contra os cortes, mas não se pode ser contra as "poupanças". Mesmo
quando elas mais não sejam do que cortes, despedimentos, reduções de
prestações, reformas miseráveis ainda mais miseráveis, ou, como diz
Bagão Félix, "diminuição do rendimento das famílias". Os espertos
assessores de comunicação, que se esforçam todos os dias para dar ao
Governo a "política" que o professor Marcelo diz que ele não tem e
evitar assim "erros de comunicação", são os aprendizes de feiticeiros
deste quotidiano embuste em que vivemos. Mas estão todos bem uns para os
outros.
Chamar a um novo plano de austeridade, o enésimo de há
dois anos para cá, sempre precedido da mentira de que "não vai ser
necessária mais austeridade", mais uma vez sobre os funcionários
públicos, os pensionistas e os que precisam de serviços públicos de
saúde, educação, e outros, essa coisa obscura e neutra de "medidas
contingentes", não é também um insulto à nossa inteligência e, pior que
tudo, uma ofensa aos que vão ser vítimas daquilo que o Governo chama
"desvios na execução orçamental", ou seja erros? A verdade, nua, bruta,
cruel, dura, pétrea, é que cada vez que o Governo erra, há um novo plano
de austeridade destinado a garantir que a mesma receita que falhou seja
tentada de novo, com mais uns milhares de milhões retirados às pessoas,
às famílias, à economia, para pagar uma obstinação, um beco sem saída
ideológico, uma tese sem prova, uma abstracção intelectual, no fundo uma
enorme vaidade sem perdão. Sócrates deitou fora milhões e milhões mal
gastos e perdulários, Passos Coelho deita fora milhões e milhões para um
vazio de arrogância, ignorância e vaidade, sem melhorar o défice,
aumentando a dívida, sem se ver qualquer utilidade. Mas o dinheiro,
antes como agora, foi para algum sítio.
E como aceitar o supremo
insulto fruto de uma displicência que acaba por ser maldosa e arrogante,
de se dizer que a recessão para este ano "aumenta de um ponto
percentual", como se passasse de 35,4 para 36,4, quando passa de 35,4
para 70,8, usando estes números imaginários para se perceber a
enormidade do "ponto percentual" que significa errar por 100%, duplicar
por dois uma desgraça, que passa a ser o dobro do que era, ou seja uma
pequena coisa, "um pequeno ponto percentual", como se fosse a coisa mais
natural do mundo.
Os erros agora também se chamam "ajustamentos"
e podem ser tidos apenas como a natural consequência da "dificuldade
das previsões macroeconómicas", que se tem que ir "ajustando" mês a mês.
Mas os erros antes de serem "ajustados" acaso não foram instrumentos de
combate político, fonte de afirmação de legitimidade, atirados contra
todos os que suspeitavam da sua verdade e exequibilidade? Não tem
importância, encontra-se uma estatística qualquer que mostra que estamos
no "caminho certo", mesmo que tudo esteja errado, e há sempre quem coma
esta palha.
É tudo "ajustamento" porque os manipuladores das
palavras entendem que, lá fora da sua janela do poder, tudo é plástico
que se pode moldar, é tudo paisagem em que se pode plantar uma sebe alta
para não ver o mais de um milhão de desempregados "em linha com o que
estava previsto", e colocar os portugueses numa jaula de ratinhos a
correr para fazer experiências. E que tal cortar metade da comida a ver
se eles se "ajustam" à "poupança" de só comer metade? Trinta morrem,
quarenta ficam doentes, vinte ainda têm gordura para aguentar. Aguentam,
aguentam, diz o tratador. Excelente, ficam dez por cento, a "selecção
natural" funcionou e deixou-nos com os mais fortes, os que se "ajustam",
os "empreendedores". Morreram alguns comidos pelos outros? Não há
problema, sempre há ratinhos "empreendedores" e que não são "piegas", e
que mostram as virtudes do modelo.
No dia em que este Governo for
corrido, pelo mesmo tipo de onda de rejeição que varreu o seu
antecessor, só que agora do tamanho das ondas do Canhão da Nazaré, vai
sair com a atitude daquele que diz: o último a sair que feche a luz e a
porta, porque já não é connosco, "queríamos mudar Portugal e não nos
deixaram". E irão para os seus lugares de acolhimento confortável, já
pensados e preparados, sem temor e sem tremor.
No entretanto,
estragaram Portugal com a mesma sanha do filósofo de Paris, numa
situação que vai demorar décadas para ser consertada, se é que tem
remédio. Descaracterizaram o PSD como Sócrates fez ao PS, tornaram
pestíferos os políticos em democracia e as instituições da democracia,
destruíram a geração actual, a que tratam sobranceiramente como a dos
"instalados" e querem desempregar para "ajustar" o preço da mão-de-obra,
e hipotecaram a geração seguinte com a mesma antiga maldição da baixa
qualificação, do provincianismo, do quotidiano de subsistência onde não
há recursos para os bens materiais quanto mais para os "imateriais".
Vão
deixar-nos na periferia da periferia, como um país eternamente
assistido por uma Europa para quem pagar ao seu bom aluno são trocos
desde que ele se porte bem. Irá a troika, ficará o BCE, a
Comissão Europeia e o Pacto orçamental. Ficará um país medíocre e
remediado, uma praia razoável para o Verão. Deles vamos herdar uma
enorme colecção de invejas e ressentimentos sociais, que dividirão os
portugueses entre si, aumentando ao mesmo tempo a apatia e a violência
social.
Não é bom viver no Portugal onde reina o engano e a
mentira institucionalizada. E não custa prever o futuro. Está tudo nas
palavras.
(url)
© José Pacheco Pereira
|