O Governo põe-se a jeito, é dadivoso, a troika elogia-o pela subserviência e pede mais. Ele diz sim e agradece
Vem a caminho um novo pacote de austeridade com o
nome pomposo de "refundação do Estado". Não é sobre a definição das
funções do Estado, como se tem feito o favor ao Governo de o tomar. Não é
nenhuma política nem de superfície, quanto mais de fundo: é o resultado
de uma negociação feita com a troika, sem nosso conhecimento, sobre a
qual abundam declarações contraditórias e algumas mentiras. É uma meta
numérica para os cortes, nada mais. Se tiver que se chegar lá "custe o
que custar", chega-se. Como tudo que tem sido feito nos últimos tempos
"vem no memorando", mesmo quando o que vem no memorando é outra coisa, o
mesmo memorando que o Governo nalguns casos diz que aplica, noutros
recusa aplicar (a diminuição do número de concelhos), noutros era para
aplicar e não aplicou (os 4,5%). O Governo põe-se a jeito, é dadivoso, a
troika elogia-o pela subserviência e pede-lhe mais. Ele diz sim, sim e
agradece.
Já houve o PEC1, PEC2, PEC3, o Orçamento do Estado de
2010 com muitas medidas restritivas, várias medidas avulsas do Governo
Sócrates, pelo menos cinco "pacotes", tendo ficado pelo caminho o PEC4.
Com Passos Coelho tivemos o corte de metade do subsídio de Natal em
2011, mais uma série de medidas avulsas, cortes de subsídios, alterações
na lei laboral, seguido do corte dos dois subsídios para a função
pública, mais uma subida do IVA. Depois veio o aumento da TSU, que ficou
no papel, e os vários anúncios de novas medidas sobre salários,
subsídios de desemprego, RMI, aumento generalizado de IMI, e por fim o
"enorme aumento de impostos". Todos os dias, inclusive na proposta de
diluição do subsídio de Natal ou de férias, os especialistas em direito
fiscal, contabilidade e economia encontram novas formas de extorquir
mais dinheiro, muitas ilegais. Mas who cares?. É o "ajustamento", a correr muito bem.
É
verdade que tecnicamente algumas destas medidas não são "pacotes de
austeridade", mas na prática são-no. E vão continuar. Todas as vezes que
o Governo falhar uma meta, haverá mais impostos. Por isso vai haver
muito mais impostos e mais pacotes de austeridade estão a caminho.
Isto
é a descrição da "coisa" em abstracto, agora veja-se como é em
concreto. Em Fevereiro de 2013, imaginemos um casal comum que vive em
Loures, ele encarregado de armazém, ela funcionária pública. Ganham nos
escalões das suas profissões um pouco acima do patamar mais baixo. Têm
trinta e sete, trinta e nove anos, dois filhos, vivem num andar barato
que compraram a crédito numa urbanização. Até ao fim deste ano,
conseguiram aguentar-se: ambos têm salário, embora ambos também já
tenham perdido parte do seu salário, com impostos e com o corte dos
subsídios na função pública. Ele teve algum atraso no salário, mas o
patrão conseguiu arranjar dinheiro para pagar aos seus cinco empregados.
Costumavam poupar alguma coisa e uma vez fizeram férias em Espanha, num
pacote turístico muito barato que pagaram sem aceder ao crédito. Aliás,
não estão especialmente endividados, a não ser a casa. Levantaram uma
pequena poupança quando terminou o prazo e, quase sem dar por ela,
gastaram-na. Porém, nada de grave, têm medo das coisas piorarem, mas até
agora apenas apertaram o cinto, "ajustaram-se" cortando nalgumas
despesas.
Em Fevereiro de 2013, perceberam ao olhar o salário que
recebem, que cerca de trinta por cento desapareceu. É muito. Estavam no
limiar, agora estão abaixo do limiar, o dinheiro deixou de chegar. Não
sabem como vai ser. A primeira consequência é que não há dinheiro para
as propinas do filho mais velho, que estuda Psicologia, mas ainda não
sabem como lhe vão dizer. Lembram-se do "piegas" do primeiro-ministro e
começam a ficar zangados. Compram o Correio da Manhã, antes compravam o Diário de Notícias, mas agora não só compram o Correio da Manhã, como o lêem com mais atenção. Antes compravam o Expresso, agora decidiram poupar e uma das primeiras despesas a evitar foi o Expresso. A seguir virá o Correio da Manhã.
No
primeiro semestre de 2013, apercebem-se de que cada conta que chega
para se pagar implica que outra conta não é paga. Em Maio, cancelaram um
empréstimo a prazo, toda a sua poupança, perdendo os juros. O banco fez
tudo para atrasar a liquidação do empréstimo, inclusive oferecendo um
novo crédito para consumo, para remediar a situação, mas ele sabia
alguma coisa de contas e assustou-se com o que iria pagar e recusou. A
partir desse mês, as contas começaram a ser pagas com a pequena
poupança, mas cada vez havia mais contas e menos dinheiro para as pagar.
A luz, gás, a água tinham subido, as despesas do telemóvel também. A
prestação da casa era a única coisa que não tinha subido, e por isso foi
a última coisa a deixar de ser paga, o que começou a acontecer por
volta de Junho. Tinham a Sport TV, mas cancelaram a assinatura ainda em
2012, e em 2013, as contas da televisão, Internet, telemóvel foram as
primeiras a deixarem de serem pagas. Pagaram o seguro do carro, mas já
não pagaram o seguro da casa. Deixou de haver dinheiro para o passe dos
filhos, para o condomínio, para roupa, para substituir um microondas
avariado.
Quando ele recebeu o seu IRS, para além do que ele e ela
tinham já descontado, e logo a seguir o IMI pela casa, já não havia
dinheiro para pagar. A subida fora brutal, tanta que pensavam ter sido
um erro, mas sabiam que não valia a pena protestar contra o fisco, e não
fizeram nada. Agora tinham medo de ir à caixa do correio ou de receber
mensagens no telemóvel da Via CTT, nem as abriam porque já estavam em
"incumprimento", a caminho de execuções fiscais. Prazos cada vez mais
curtos precediam uma nova conta das Finanças e uma nova ameaça de
execução. Numa espécie de vingança contra o fisco faziam gala de não
pedir factura de nada, a mesma atitude que alguns colegas no emprego já
tinham tomado. Não servia para nada, ajudavam uns aflitos como eles, e
atingiam o Passos e o Gaspar.
A seguir às férias ele perdeu o
emprego, porque o armazém fechou. Ela dissera-lhe que muitas pessoas na
função pública estavam a ser mandadas para a "mobilidade especial" com
grandes cortes salariais. Quando ele lhe disse que ia pedir o subsídio
de desemprego, enquanto procurava um novo emprego que sabia não ir
encontrar porque era "velho" de mais, ela confessou-lhe a chorar que
tinha a certeza que estava para ir para a "mobilidade especial", visto
que era o "chefe" que escolhia e nunca se tinha dado bem com ele. No
final do ano, o desespero era total, os conflitos no interior do casal
eram quotidianos. Não se divorciavam porque não havia dinheiro para
separar casas. Ele jurava que nunca mais votaria na vida, para "não dar
de mamar a estes corruptos", ela participara pela primeira vez numa
manifestação "indignada". Perceberam pela primeira vez o preço de trocar
direitos por assistência.
Em 2014, não havia família, a casa
estava em risco, o carro fora-se, e nenhum conseguia arranjar um único
papel porque faltava uma declaração fiscal impossível de tirar sem
"regularizar" as dívidas. De há muito que o seu prédio deixara de ter
elevador, porque ninguém pagava o condomínio. Subiam cinco andares a pé,
mas sabiam o drama que isso era para a senhora idosa do sétimo, que só
subia e descia com muita dificuldade para ir levantar a reforma. Uma vez
encontraram-na ofegante sentada na escada.
Estavam falidos e
tinham ido à advogada da DECO, para fazer essa declaração. Sentiam uma
enorme violência interior, e oscilavam entre uma apatia exterior, e uma
vontade de partir tudo. Ambos pensaram no suicídio, mas foi só pensar.
Ela pensou ir ao "Congresso Financeiro" da IURD, ele em assaltar um
banco, mas foi só pensar. Será que os acomodados do poder acreditam que
estes pensamentos não atravessam a cabeça de muita gente que nunca
pensou tê-los? Desiludam-se, as coisas estão muito pior do que vem nos
jornais.
Em dois anos tinham a vida estuporada, não acreditavam em
nada. Tinham vergonha dos filhos, tinham vergonha dos pais, tinham
vergonha dos vizinhos, tinham vergonha de si próprios. Não sabiam como
iriam continuar a viver. Tinham perdido qualquer sonho, qualquer
expectativa, qualquer esperança. Para a frente era só descer. E são
muitos, mesmo muitos, quase todos. Experimentem passear a vossa riqueza,
a vossa indiferença diante deles, sem polícias, sem barreiras de metal,
e dizer "aguentam, aguentam!" aos "piegas".
(Versão do Público de 1 de Dezembro de 2012.)