ABRUPTO

11.9.12


COISAS DA SÁBADO: O GOVERNO ACORDOU O LOBI DA CULTURA 

Uma das consequências da combinação entre um objectivo obscuro – a quem se vai “dar” a televisão – e as sucessivas asneiras no modus faciendi governamental para dar um corpo ao fantasma de Relvas, foi o reanimar do grupo vocal da “cultura” subsidiada. A palavra “cultura” está aqui entre aspas, porque cultura sem aspas é outra coisa. Mas não é disso que estamos a falar, mas sim do Manifesto em Defesa da Cultura, a que tem aspas, despertado pelos demónios que Relvas, Borges e Passos Coelho, acordaram da letargia. 

Esta “cultura” é uma “indústria de conteúdos”, como agora se diz, inteiramente subsidiada a fundo perdido pelo estado, ou cujo único cliente é o estado, governo central, empresas como a RTP, e autarquias. As excepções confirmam a regra, mas as excepções são os “Morangos com açúcar”, que fazem inteiramente parte desta “indústria cultural”, por muito horror que isso possa provocar. São é mais vendáveis, fazem parte daquilo que é tratado pejorativamente como o “medíocre ruído dos “mercados”. 

Aqui, sou absolutamente liberal: o estado não deve cuidar nem da criação cultural, nem de ter comunicação social, nem de fazer jornalismo, nem de interferir no gosto. O seu papel é garantir o património, garantir que a educação seja também “para as artes”, e apoiar as indústrias, incluindo a “cultural”, pelos mesmos critérios com que apoia o resto do tecido económico. Depois há um papel mais controverso, nestes tempos de marcas e marketing, o de usar a “cultura” como propaganda de estado, na “imagem” do país, na tradição Malraux-Lang, que tanta influência teve e têm nos dois partidos, PS e PSD, a que se soma agora o CDS, rendido às exposições de Versalhes. Aliás os autores do Manifesto também caiem na apologia nacionalista da “Cultura, elemento central na formação da consciência da soberania e da identidade nacional.” 

Não deve haver ministério, nem secretaria de estado, mas as questões da “cultura” são da educação, do património, do comércio externo, e dos negócios estrangeiros. Cabem lá todas e se lá estivessem seria melhor para todos, menos para o grande trunfo de “venda” da “cultura” que é a sua pretensa intangibilidade, o seu indiscutível “valor” que não pode ser aferido por nenhum critério, que não seja o prestígio entre os pares. Os pares dividem-se ferozmente, tratam-se entre si com um vocabulário inimaginável, competem com grande virulência pelos bens escassos disponíveis, mas unem-se na defesa colectiva da indústria. Não há mal nenhum nisso, desde que se perceba ao que vêem. 

É esta aparente intangibilidade, dadora de “prestígio cultural” que tornam este mundo de serviços apetecível para os políticos. Custa relativamente pouco, e, enquanto durar o estipêndio, não faltam agradecimentos e bajulação. Claro que uns podem ir buscar esta legitimação “cultural” aos toureiros e ao fado, e outros ao design e às vanguardas, mas a história dos últimos trinta e tal anos de democracia, está cheia do mesmo reconhecimento ao poder que já movia António Ferro e a sua “política do espírito” Teve-o Carrilho e Santana Lopes, teve e tem Morais Sarmento desde que recuou na RTP, e tem todos os que, sejam de direita ou de esquerda, lhes dêem o que eles querem. A excepção é Rui Rio, a besta negra que atacou a “cultura” no Porto, e merece por isso todos os insultos em que este lóbi é prolixo. 

OS GLUTÕES QUE ATACAM A MENINA DA CULTURA 

 Um desenho que ilustra as actividades do Manifesto em Defesa da Cultura é todo um tratado simbólico do pensamento sobre a “coisa”. Há dois glutões armados de dentes e ferrões, com vários olhos, que atacam uma menina indefesa que cai de alto, com os seus longos cabelos, a dita “cultura”. “Acorrei que matam a cultura!!!”, nem mais nem menos do que com três pontos de exclamação. 

O texto do Manifesto de Dezembro de 2011 revela bem a imbricação desta “cultura” com a burocracia governamental, nele se refere o PRACE, o PREMAC, o INOV-ART, o ICA, a DG Artes, todos os acrónimos usados com o à vontade de quem conhece bem estes meandros do estado. O Manifesto é um longo e palavroso exercício dominado pelo dinheiro não-“mercantil”, ou seja o do estado, o célebre 1% no Orçamento para a “cultura”. Dinheiro e o modo burocrático como é concedido, são as preocupações fundamentais: 
Destruição e perversão do princípio de serviço público; estrangulamento financeiro; desmantelamento, redução e desqualificação de serviços; centralização e agregação burocrática de instituições; mercantilização: as políticas de agressão à Cultura seguidas pelos últimos governos criaram uma situação insustentável. A preocupação não se afasta nunca do estado. 
Repare-se que não se trata de uma queixa contra a censura, contra perseguições a artistas individuais pelo que fazem ou dizem, mas uma queixa geral sobre a falta de encomendas: “Austeridade” na cultura não destrói só o que existe, destrói o que fica impedido de existir.” E o que “fica impedido de existir” é, entre outras coisas a “criação contemporânea”. O que temem é uma “ área cultural (…) inteiramente colonizada, sem alternativa, pelos produtos mercantis, rotineiros e homogeneizadores das indústrias culturais”. Dono por dono, preferem o estado e os governos. 

TRABALHADORES DA CULTURA E “EMANCIPAÇÃO DO TRABALHO” 

Que os intelectuais que assinam este manifesto se classifiquem de “trabalhadores” (“centenas ou milhares de criadores e outros trabalhadores da cultura”) tem um certo sentido. A natureza das reivindicações é sindical e corporativa, num manifesto assinado por patrões da “cultura” e pelos seus empregados, irmanados na defesa da “indústria”. Como já disse antes, nenhum problema com isso. Mas poupem-nos à enorme arrogância política com que se afirma que a “Cultura”, com C grande claro, “deve assumir um papel central” numa “crise que não tem saída democrática sem a intervenção determinante dos trabalhadores e do povo.” Esta gente não é peca nem modesta, não se ficam por menos do que considerar que a sua “luta” é irmã da luta pela emancipação do trabalho”, e só não está lá “emancipação da humanidade” porque os autores do Manifesto são esquerdistas. 

 IMPERDOÁVEL 

Mexer nisto é mexer no vespeiro mais palavroso e audaz nos insultos que há, nos terrenos em que os governantes mais temem: comunicação social, blogues, redes sociais. Como se verá. Não se pode perdoar à tríade governamental que acordou este lóbi, até porque políticos do género que temos hoje são mais permeáveis às suas pressões, porque, não tendo a cultura sem aspas, precisam da legitimidade que esta “cultura” lhes dá. Recuam e já estão a recuar. Estão bem uns para os outros.

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© José Pacheco Pereira
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