O
que se está a passar com a história da televisão é apenas um exemplo do
modus operandi do Governo e do esgotamento desse modelo de actuação.
Marca também a diminuição muito acentuada da margem de manobra
governativa e, no seu conjunto, revela mais claramente as debilidades,
fragilidades e mediocridades da governação. O problema é que os
governantes não estão preparados para os tempos com que têm que lidar.
Por muito chocante que isto pareça, o Governo é bastante medíocre. Há
excepções, mas são excepções, a governação em geral está longe de
responder às dificuldades do momento. A única coisa que unifica a
governação são os cortes impostos pelas Finanças. Fora disso não há
nada. É pouco.
O fim da impunidade política do Governo, e o esgotamento do período em que tudo lhe era favorável, coloca a qualidade da governação à prova e essa prova está a falhar. Ninguém nega a conjuntura difícil em que o Governo teve que actuar, mas convém também não esquecer, como a alguns convém, as igualmente excepcionais condições para a defrontar: maioria absoluta, e apoio público às medidas de austeridade, como nunca antes se tinha visto.
Não me refiro a qualquer estado de graça, porque isso é em grande parte uma invenção mediática, que por si não serve para nada do ponto de vista analítico. Este Governo beneficiou da circunstância de haver uma repulsa agressiva do Governo anterior, um pouco como Sócrates teve em relação a Santana Lopes. No caso actual da queda de Sócrates, foi um processo rápido e cataclísmico, que bem pode servir de lição para a facilidade com que muda quase tudo. Sócrates tinha ganho as eleições pouco antes, e pouco tempo depois teve uma maciça manifestação nas ruas, de todo o mundo e ninguém, da direita à esquerda, furiosa com ele. Acabou derrubado pelo CDS, pelo PSD, pelo PCP, pelo BE e pelo Presidente da República.
Por outro lado, o actual Governo beneficiou (e beneficia) de um profundo sentimento de inevitabilidade, fatalismo e apatia, gerado pela conjugação da crise europeia, e pela perda visível e ostensiva da soberania nacional. Por isso, mais do que um estado de graça efémero, existia um consenso nacional, tanto quanto esta palavra faz sentido, de que teria que haver um forte aperto no cinto de todos os portugueses. Era à força, e à bruta, mas foi aceite como inevitável. Mais: foi bem aceite.
A política de austeridade, fosse ela qual fosse, surgia como inevitável a uma parte significativa da opinião pública, incluindo à esquerda, que interiorizou que eram necessárias medidas de contenção e sacrifícios. Isso facilitou (e ainda facilita) a vida do actual Governo. Contrariamente ao habitual, era "popular" tomar medidas de austeridade e o populismo fazia-se nessa linha. Não era coisa que durasse, nem que deixasse de ter enormes fragilidades, mas existiu e deu ao Governo uma oportunidade única. O Governo desbaratou-a, desconhecia muito da realidade nacional e guiou-se por ideias superficiais, exagerou onde devia ter sido prudente, revelou uma duplicidade de critérios punitivos entre os "de cima" e os "de baixo", um erro fatal em tempos de austeridade, comportou-se com jactância e arrogância "custe o que custar", caiu na tentação de procurar inimigos e bodes expiatórios e, no fim, falhou mesmo naquilo em que não podia falhar, no controlo do défice. Agora, quando começa a haver um efeito de esgotamento da margem de manobra da governação, agora é preciso qualidade e saber, não chega aproveitar a maré, porque a maré mudou.
De há algum tempo para cá, era visível um padrão de actuação governativa, muito dependente de ideias simples de marketing político, que consistia em proceder em três fases. A primeira era a criação de um inimigo, conforme com o sentimento populista. Esse inimigo, foi o Governo anterior, Sócrates, o despesismo, o clientelismo do PS, o descalabro das contas, a bancarrota, o "regabofe". Havia muita razão para apontar a este inimigo, mas a uma dada altura já não chega. À custa dele passaram as primeiras medidas de austeridade, em violação das promessas eleitorais. Mas o apoio popular à austeridade estava intacto, e a culpa era sempre retrospectiva.
Depois as coisas começaram a complicar-se e apareceram novos inimigos. Sócrates teve a fronda dos professores, Passos Coelho imitou-o, apontando o dedo aos funcionários públicos. O mecanismo de os tornar inimigos era o mesmo de sempre e com sucesso garantido: eram uns privilegiados em relação ao privado, por isso tinham que ser punidos. Começou então uma deriva quanto aos inimigos que iria deixar marcas que, mais cedo ou mais tarde, trariam efeitos perversos. Até porque a passividade gerada pela ideia da inevitabilidade da austeridade, ideia popular nesta altura, foi usada também de forma populista (como Sócrates fez em relação ao défice nos primeiros anos da sua governação), e começava a misturar-se com o medo. O medo pode ser mais eficaz para garantir a passividade do que a interiorização da inevitabilidade. Mas o medo é uma arma de dois gumes, quando acaba ou esmorece, potencia a vingança.
Com a RTP, o Governo pensava que podia actuar como sempre tinha feito, como fizera com os funcionários públicos, com as fundações, com a legislação laboral. Primeiro, colocava notícias negativas sobre o "regabofe" na empresa RTP, esquecendo que o próprio Governo actual injectou mais dinheiro do que nunca na empresa, para a tornar apetecível ao destinatário previsto. Depois, avançava com um balão de ensaio não de uma solução qualquer, mas da solução mais "atraente", e por fim tomava publicamente a decisão que já está tomada há muito tempo. Havia três tempos, mas em todos eles há um núcleo duro: a RTP vai parar a "mãos amigas", seja qual for o modo e o processo. Ponto. Tudo o resto é instrumental.
Esqueceu-se de várias coisas. Primeiro, com Miguel Relvas transformado num fantasma que vagueia por Timor, qualquer solução para a RTP está, à partida, fragilizada. Em segundo lugar, não pode usar António Borges sem que este suscite de imediato reacções negativas mal aparece, inclusive dentro do Governo, desde logo porque ele não deixa nunca dúvidas de que tem mais poder do que muitos ministros. E, por fim, menosprezou as reacções de um dos lóbis mais vocais do país - o dos fornecedores de "serviço público", na cultura, na informação, no jornalismo. Este lóbi estava enfraquecido, mas cheirando a presa ferida na pessoa do ministro e percebendo a asneira que foi colocar Borges a abrir as hostilidades, começou a falar de alto, com a enorme vantagem que sempre teve: o acesso fácil e amplificado à comunicação social. A percepção da fraqueza dá força aos outros.
Depois, esqueceu-se que o PS pode aceitar tudo na televisão, desde que não desapareçam os mecanismos de controlo da comunicação social do Estado. A única privatização que o PS não aceita é a de tornar o "bloco central" na RTP propriedade do PSD, e, quando lá chegar, não haja nada no "pote". A lógica de poder partidário no PS é igual à do PSD. O que reforça um ameaça o outro. O PS está-se nas tintas para os Estaleiros de Viana do Castelo, ou a TAP, ou a ANA, mas não se está nas tintas para o controlo da comunicação social pelo PSD. Admite que o PSD, enquanto governa, manda mais do que o PS na comunicação social do Estado, mas quer, quando lá chegar, ter disponíveis os mesmos meios de controlo, para ser a sua vez. É esta relação que tem sido o seguro de vida da RTP.
O Governo parece de cabeça perdida, porque a coisa não correu bem - as últimas declarações de Passos Coelho de que afinal não havia nenhuma decisão e que tudo estava em aberto e se tratava apenas de "histeria" são completamente implausíveis, num processo que está a meses de ser concluído. Se fossem verdade, então haveria um atraso colossal, mas não são verdade. A verdade é que o Governo tinha uma solução para passar a televisão para "mãos amigas", sem obrigar essas mãos a gastar muito dinheiro. Relvas, Borges e ele próprio, Passos Coelho, fizeram asneira, obrigaram-no a dizer publicamente que tudo estava na estaca zero, quando tudo já estava pronto.
Uma das novidades desta nova fase da governação é que os recuos vão ser muito mais visíveis. Alguns são cosméticos, quando há interesses ocultos mais poderosos do que o tumulto do protesto visível, mas o tempo do recuo e da debandada já começou. Nas autarquias, nas Forças Armadas, nas escolas, nas fundações, nas PPP, nas medidas de "moralização" do Estado, até nas Finanças, nas mil e uma alterações a posteriori de diplomas que o Governo considerava estruturais, e que, ou por terem sido mal feitos, ou porque geraram reacções duras, estão a ser modificados discretamente. Como a RTP revelou, onde ninguém assume responsabilidade de nada, começou a época do caranguejo.
O fim da impunidade política do Governo, e o esgotamento do período em que tudo lhe era favorável, coloca a qualidade da governação à prova e essa prova está a falhar. Ninguém nega a conjuntura difícil em que o Governo teve que actuar, mas convém também não esquecer, como a alguns convém, as igualmente excepcionais condições para a defrontar: maioria absoluta, e apoio público às medidas de austeridade, como nunca antes se tinha visto.
Não me refiro a qualquer estado de graça, porque isso é em grande parte uma invenção mediática, que por si não serve para nada do ponto de vista analítico. Este Governo beneficiou da circunstância de haver uma repulsa agressiva do Governo anterior, um pouco como Sócrates teve em relação a Santana Lopes. No caso actual da queda de Sócrates, foi um processo rápido e cataclísmico, que bem pode servir de lição para a facilidade com que muda quase tudo. Sócrates tinha ganho as eleições pouco antes, e pouco tempo depois teve uma maciça manifestação nas ruas, de todo o mundo e ninguém, da direita à esquerda, furiosa com ele. Acabou derrubado pelo CDS, pelo PSD, pelo PCP, pelo BE e pelo Presidente da República.
Por outro lado, o actual Governo beneficiou (e beneficia) de um profundo sentimento de inevitabilidade, fatalismo e apatia, gerado pela conjugação da crise europeia, e pela perda visível e ostensiva da soberania nacional. Por isso, mais do que um estado de graça efémero, existia um consenso nacional, tanto quanto esta palavra faz sentido, de que teria que haver um forte aperto no cinto de todos os portugueses. Era à força, e à bruta, mas foi aceite como inevitável. Mais: foi bem aceite.
A política de austeridade, fosse ela qual fosse, surgia como inevitável a uma parte significativa da opinião pública, incluindo à esquerda, que interiorizou que eram necessárias medidas de contenção e sacrifícios. Isso facilitou (e ainda facilita) a vida do actual Governo. Contrariamente ao habitual, era "popular" tomar medidas de austeridade e o populismo fazia-se nessa linha. Não era coisa que durasse, nem que deixasse de ter enormes fragilidades, mas existiu e deu ao Governo uma oportunidade única. O Governo desbaratou-a, desconhecia muito da realidade nacional e guiou-se por ideias superficiais, exagerou onde devia ter sido prudente, revelou uma duplicidade de critérios punitivos entre os "de cima" e os "de baixo", um erro fatal em tempos de austeridade, comportou-se com jactância e arrogância "custe o que custar", caiu na tentação de procurar inimigos e bodes expiatórios e, no fim, falhou mesmo naquilo em que não podia falhar, no controlo do défice. Agora, quando começa a haver um efeito de esgotamento da margem de manobra da governação, agora é preciso qualidade e saber, não chega aproveitar a maré, porque a maré mudou.
De há algum tempo para cá, era visível um padrão de actuação governativa, muito dependente de ideias simples de marketing político, que consistia em proceder em três fases. A primeira era a criação de um inimigo, conforme com o sentimento populista. Esse inimigo, foi o Governo anterior, Sócrates, o despesismo, o clientelismo do PS, o descalabro das contas, a bancarrota, o "regabofe". Havia muita razão para apontar a este inimigo, mas a uma dada altura já não chega. À custa dele passaram as primeiras medidas de austeridade, em violação das promessas eleitorais. Mas o apoio popular à austeridade estava intacto, e a culpa era sempre retrospectiva.
Depois as coisas começaram a complicar-se e apareceram novos inimigos. Sócrates teve a fronda dos professores, Passos Coelho imitou-o, apontando o dedo aos funcionários públicos. O mecanismo de os tornar inimigos era o mesmo de sempre e com sucesso garantido: eram uns privilegiados em relação ao privado, por isso tinham que ser punidos. Começou então uma deriva quanto aos inimigos que iria deixar marcas que, mais cedo ou mais tarde, trariam efeitos perversos. Até porque a passividade gerada pela ideia da inevitabilidade da austeridade, ideia popular nesta altura, foi usada também de forma populista (como Sócrates fez em relação ao défice nos primeiros anos da sua governação), e começava a misturar-se com o medo. O medo pode ser mais eficaz para garantir a passividade do que a interiorização da inevitabilidade. Mas o medo é uma arma de dois gumes, quando acaba ou esmorece, potencia a vingança.
Com a RTP, o Governo pensava que podia actuar como sempre tinha feito, como fizera com os funcionários públicos, com as fundações, com a legislação laboral. Primeiro, colocava notícias negativas sobre o "regabofe" na empresa RTP, esquecendo que o próprio Governo actual injectou mais dinheiro do que nunca na empresa, para a tornar apetecível ao destinatário previsto. Depois, avançava com um balão de ensaio não de uma solução qualquer, mas da solução mais "atraente", e por fim tomava publicamente a decisão que já está tomada há muito tempo. Havia três tempos, mas em todos eles há um núcleo duro: a RTP vai parar a "mãos amigas", seja qual for o modo e o processo. Ponto. Tudo o resto é instrumental.
Esqueceu-se de várias coisas. Primeiro, com Miguel Relvas transformado num fantasma que vagueia por Timor, qualquer solução para a RTP está, à partida, fragilizada. Em segundo lugar, não pode usar António Borges sem que este suscite de imediato reacções negativas mal aparece, inclusive dentro do Governo, desde logo porque ele não deixa nunca dúvidas de que tem mais poder do que muitos ministros. E, por fim, menosprezou as reacções de um dos lóbis mais vocais do país - o dos fornecedores de "serviço público", na cultura, na informação, no jornalismo. Este lóbi estava enfraquecido, mas cheirando a presa ferida na pessoa do ministro e percebendo a asneira que foi colocar Borges a abrir as hostilidades, começou a falar de alto, com a enorme vantagem que sempre teve: o acesso fácil e amplificado à comunicação social. A percepção da fraqueza dá força aos outros.
Depois, esqueceu-se que o PS pode aceitar tudo na televisão, desde que não desapareçam os mecanismos de controlo da comunicação social do Estado. A única privatização que o PS não aceita é a de tornar o "bloco central" na RTP propriedade do PSD, e, quando lá chegar, não haja nada no "pote". A lógica de poder partidário no PS é igual à do PSD. O que reforça um ameaça o outro. O PS está-se nas tintas para os Estaleiros de Viana do Castelo, ou a TAP, ou a ANA, mas não se está nas tintas para o controlo da comunicação social pelo PSD. Admite que o PSD, enquanto governa, manda mais do que o PS na comunicação social do Estado, mas quer, quando lá chegar, ter disponíveis os mesmos meios de controlo, para ser a sua vez. É esta relação que tem sido o seguro de vida da RTP.
O Governo parece de cabeça perdida, porque a coisa não correu bem - as últimas declarações de Passos Coelho de que afinal não havia nenhuma decisão e que tudo estava em aberto e se tratava apenas de "histeria" são completamente implausíveis, num processo que está a meses de ser concluído. Se fossem verdade, então haveria um atraso colossal, mas não são verdade. A verdade é que o Governo tinha uma solução para passar a televisão para "mãos amigas", sem obrigar essas mãos a gastar muito dinheiro. Relvas, Borges e ele próprio, Passos Coelho, fizeram asneira, obrigaram-no a dizer publicamente que tudo estava na estaca zero, quando tudo já estava pronto.
Uma das novidades desta nova fase da governação é que os recuos vão ser muito mais visíveis. Alguns são cosméticos, quando há interesses ocultos mais poderosos do que o tumulto do protesto visível, mas o tempo do recuo e da debandada já começou. Nas autarquias, nas Forças Armadas, nas escolas, nas fundações, nas PPP, nas medidas de "moralização" do Estado, até nas Finanças, nas mil e uma alterações a posteriori de diplomas que o Governo considerava estruturais, e que, ou por terem sido mal feitos, ou porque geraram reacções duras, estão a ser modificados discretamente. Como a RTP revelou, onde ninguém assume responsabilidade de nada, começou a época do caranguejo.
(Versão do Público de 1 de Setembro de 2012.)