ABRUPTO

25.1.12


A CONSTRUÇÃO DA MÁFIA PORTUGUESA (2)


A pergunta certa é quase sempre a mesma: por que razão foi escolhida esta pessoa e não outra. Ou seja, se considerarmos que um negócio é um negócio e exige determinado tipo de perfil, conhecimentos, experiência, por que razão as escolhas para lugares de topo, bem remunerados, são feitas de pessoas que não correspondem nem de perto nem de longe ao perfil que seria "natural"? Qual é a natureza da perturbação que justifica o desvio da escolha "natural"? Por que razão encontramos no centro desta "área de negócios politizados" sempre as mesmas pessoas, sempre os mesmos curricula , sempre os mesmos perfis de carreira, sempre as mesmas redes de influência e sempre um "serviço" político ou o seu pagamento? Por que razão vemos o dinheiro, os negócios, mais do que o empreendedorismo, entrar nessas áreas onde o poder de Estado e o poder político são centrais, e onde o controlo da informação e da decisão política é a chave do sucesso no negócio?

Se se quiser fazer negócio na área dos resíduos, se se quiser instalar parques eólicos, se se quiser vender mobiliário urbano, se se quiser instalar um atelier de arquitectura, se se for um urbanizador, se se quiser aceder a fundos comunitários, se se trabalhar na área do marketing e das agências da comunicação, na advocacia de negócios, ou mesmo se se quiser abrir um restaurante da moda, só há dois caminhos de sucesso garantido: conhecer os políticos certos e depois conhecer os jornalistas certos. E o mercado sabe muito bem quem são os "políticos certos" e os "jornalistas certos".

Deixando os jornalistas por agora, voltemos à "área de negócios politizados". Precisa-se aí de ter conhecimentos directos com os aparelhos partidários que controlam o acesso ao poder político executivo, a nível central ou local, ou ter um "facilitador" influente. Quando nos perguntamos por que razão nessas empresas, que actuam nesta "área de negócios politizados", se escolhem para lugares de administração, bem remunerados, pessoas que ou são políticos no activo ou têm uma relação de "facilitação" e influência com o poder político, a resposta é evidente. O processo Face Oculta é todo sobre isso, mas também o é o Portucale , e muitos outros.

Outra característica desta "área de negócios politizados" é a de estar cada vez mais ligada a capitais com origem em países onde a corrupção é uma forma de poder e os sistemas políticos são autoritários, como é o caso típico dos capitais angolanos que aí abundam. Esses capitais têm todos um pequeno problema, que pelos vistos não interessa a ninguém, que é o de serem milhares de milhões com origem em pessoas que legalmente ganham apenas umas centenas de dólares no seu cargo político. Aproveitem para ler isto hoje no PÚBLICO, porque a continuar o takeover angolano sobre os órgãos de informação portugueses, em breve isto não poderá ser dito em quase lado nenhum.

Vejamos um caso hipotético e compósito de um político tornado gestor. Começou por baixo, por um aparelho partidário local cujo controlo assegurou, primeiro pessoalmente, depois através de homens de sua confiança pessoal. Durante toda a sua vida política nunca deixará de manter um controlo rigoroso sobre a sua zona de influência original, colocando lá homens de mão, que mais tarde emprega, distribuindo benesses e lugares sempre em primeira mão para o aparelho onde se iniciou e cresceu. Perder o controlo dessa base original é um grande risco, porque é aí que as pessoas melhor o conhecem, numa altura em que os seus primeiros passos de carreira ainda eram crus e pouco sofisticados e deixaram rastro.

Iniciou-se a receber "avenças" dos empresários locais que conheceu no processo de obter financiamentos para a actividade partidária. Começa a entrar ou a fazer uma rede de "amigos", a que garante "facilidades" junto do poder central e local, primeiro em coisas simples e baratas e depois vai fazendo o upgrade para negócios mais sérios. Quase toda a sua economia pessoal é feita à margem do fisco e da lei, mas isso há uns anos atrás não era problema nenhum, porque o controlo fiscal dos rendimentos era uma ficção e hoje também não é por que há offshores . Se havia algum escândalo público, a explicação clássica era de que "ganhou na bolsa", e se esse escândalo implicasse problemas com a justiça, o que era raríssimo, pagavam-se de imediato os impostos em falta e esperava-se que a máquina emperrasse nas prescrições ou numa tecnicalidade, como quase sempre acontecia.

Nesta altura, o nosso político hipotético já dá uma grande atenção à comunicação social e através de fugas de informações, que favorecem uma carreira jornalística, ou através de favores, presentes, ou mesmo falsas avenças ou empregos para familiares dos jornalistas no novo universo empresarial em construção, já tem um círculo de jornalistas no seu bolso. Nenhum, insisto, nenhum dos que fazem esta carreira hipotética o consegue fazer sem relações privilegiadas com a comunicação social, umas vezes pessoais, dominantes no passado, hoje através de agências de comunicação pagas a peso de ouro. Esse ouro é pago por nós através de encomendas de serviços "de comunicação" por uma autarquia ou um ministério "amigo", assegurados, como tudo, pelo acesso ao poder político. Não existe hoje nenhuma destas microrredes de poder que não esteja ligada à comunicação social e que não dê importância decisiva a esse factor. No fundo, são políticos modernos, antes sabiam bem do poder do telefone e dos almoços de negócios, antes de ter medo das escutas, hoje exploram a fundo o spin e as redes sociais.

Se for esperto, e muitos são mesmo muito espertos, sai a tempo da política e dedica-se "exclusivamente" aos negócios. Os seus negócios têm uma característica comum - fazem-se todos na "área de negócios politizados", todos dependem do acesso ao poder político e da decisão política, seja através de informação privilegiada, seja através de facilidades e escolhas de favor. Mas também por isso fica sempre com um pé, e um grande pé, dentro da política. Emprega nas suas empresas os seus companheiros de partido, e a sua família, cria laços sólidos no Estado e nas autarquias, recomendou e obteve a colocação de muitas pessoas que lhe são fiéis, ajuda a obter créditos e tratar de problemas com o fisco, ameaça quando é preciso e aparece quando é preciso. Nalguns casos institucionaliza a sua microrrede ou em associações e lobbies , ou, sempre deste retrato hipotético e compósito, entra numa maçonaria e usa-a para novas relações e novos recrutamentos em áreas sensíveis de decisão. Nos exemplos mais modernos recruta mesmo nos blogues alguns jovens lobos sedentos de notoriedade, poder e influência e que precisam de patrocinato, e a quem "enreda" para que não lhe venham a criar problemas no futuro. O que vemos hoje in the making é uma nova geração, preparada e escolhida pela anterior, de políticos deste tipo, uns na primeira divisão, mas a maioria na segunda divisão, onde também se ganha muito dinheiro com muito mais discrição.

Há outro nome para esta realidade - poder mafioso. Ele existe, reforça-se e reproduz-se. Cada vez menos conhece qualquer oposição, seja da Justiça, seja da opinião pública, seja de quem for. Com a crise, só pode piorar.

(Versão do Público, 21 de Janeiro de 2012.)

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© José Pacheco Pereira
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