ABRUPTO

16.1.12


A CONSTRUÇÃO DA MÁFIA PORTUGUESA (1)


Vamos lá ver se eu consigo explicar isto bem, porque isto não é fácil de explicar. Há muitos discursos sobre a corrupção e o tráfico de influências, mas não tratam bem deste assunto, porque ele só se compreende, se se unificar a análise política e social com o conhecimento dos crimes e dos abusos. Primeiro, porque se trata não de um epifenómeno conjuntural, mas sim de uma tendência estrutural que se está a reforçar com a partidocracia. Segundo, porque o crime de corrupção ou tráfico de influência é muito menos socialmente condenado do que parece e muita gente participa nos processos "democráticos" de cunha, clientelismo, patrocinato que estão na sua base. Terceiro, porque com a crise económica e social tudo isto se vai agravar, quando muita gente, com acesso ao poder político, procura aquilo que eufemisticamente se designa por "zonas de conforto", ou seja, escapar à crise.

A questão é por isso mais vasta nos seus efeitos sociais e políticos, e vai mais longe do que o problema específico de corrupção, tornando-se uma questão que molda o establishment político. Tem a ver com a construção de uma máfia social e política que perverte a representação e a democracia. Podem ter a certeza que ponderei bem o uso da palavra "Máfia", mas estou a usá-la mais no sentido da Máfia da Tangentopoli do que da Máfia siciliana, embora saiba que em Itália as duas comunicam. Cá, com excepção de certas áreas ligadas ao contínuo política-futebol-crime, tal ainda não acontece.

O problema é cada vez mais actual e a crise acentua-o. Nos últimos dias tenho lido com ainda maior atenção os jornais, ou seja, informação pública e acessível a todos. Nos jornais são as pequenas notícias que mais me interessam, as que revelam o demónio nos detalhes. Por exemplo, o político A, com determinado currículo e perfil, foi para a empresa B, com determinadas ligações com o poder político. Refiro-me a empresas privadas, não às nomeações governamentais. Tenho também falado com pessoas que, pelo seu conhecimento profissional dos meios dos negócios, conhecem esses detalhes e procedimentos, nomes e circunstâncias e que estão literalmente "passadas" com o que está a acontecer. 


A isto acrescento duas notas. Uma é que em Portugal os macroprocessos de poder são escassos, mas os microprocessos abundam. Segunda, que os macroprocessos são também mais fáceis de identificar e são mais visíveis, enquanto os microprocessos de poder representam quase uma respiração perversa em muitos sectores da economia ligados ao poder político. Por exemplo, os interesses da banca são claros e evidentes e a sua intervenção, participação, conúbio com o poder político conhecida. Mesmo os interesses dos grandes escritórios de advogados são também possíveis de identificar pelo que se sabe dos seus clientes de vulto. Eles têm mais poder, mas acabam por ter maior visibilidade, o que também não significa que sejam muito particularmente transparentes. Mas depois, sobre quase tudo o resto, aquilo a que se podem chamar "os micropoderes", eles fazem de tal maneira parte do tecido político que, quando se revela um, escondem-se cem. Na fase final do "socratismo", o processo da Face Oculta é um exemplo, como o é a história do Taguspark. Nos dias de hoje, passa-se o mesmo com as revelações sobre a composição de "homens bons" da Loja Mozart. Em ambos os casos, o que se revelou foram redes, redes de poder, uma gota de água num oceano de teias.


Quer num, quer noutro caso, a estrutura partidária é fundamental, porque ela se tornou em si mesma, em particular nos grandes partidos, uma super-rede que se entrelaça com todas as outras, gerando um contínuo de poder. Sem se compreender isto, pouco se percebe no Portugal de hoje. Quando, num debate sábio e "senatorial" como aquele que se passou há dias na SICN, alguém, com genuína perplexidade, se perguntava por que razão não é feito isto ou aquilo, mudanças no sistema eleitoral, entendimentos de médio prazo, ascensão e escolhas por mérito, etc., a resposta é antes de tudo porque os aparelhos partidários não o desejam e os interesses neles representados impedem-no. E são esses interesses que moldam os governos dos últimos anos, sejam do PS, sejam do PSD e do CDS. 


O modelo partidocrático actual, um efeito perverso de escolhas feitas nos primeiros anos da democracia para consolidar os "partidos democráticos", dando-lhes uma considerável hegemonia no processo político, produz duas coisas interligadas: a mediocratização do pessoal político e bloqueios a determinado tipo de reformas, todas as que tenham como efeito impedir o funcionamento dos mecanismos clientelares e de gestão de pequenos poderes sobre os quais se alicerça o poder partidário. Se os nossos "senadores" meterem a mão nessa massa, depressa deixarão de o ser, porque levantarão contra eles todas as fúrias nacionais, porque estão a tocar em interesses reais e solidamente estabelecidos e na "zona de conforto" de muita gente que lá chegou e lá está por via dos aparelhos partidários, tendo cartão, ou sendo apenas "companheiros da estrada". 


Os aparelhos partidários revelam sempre melhor do que qualquer outra sábia análise sociológica ou política os impasses sociais e políticos de Portugal. E nessa análise é cada vez mais importante aquilo a que atribuo o nome provisório de "área de negócios politizados". Como todos os nomes tem inconvenientes, mas pretende descrever uma área em grande crescimento para onde estão a migrar políticos e redes de influência, que são também factores na sua construção, entre outras coisas em consequência das perturbações no papel do Estado e da insegurança dos seus cargos. Digo perturbações do papel do Estado em vez de dizer diminuição do Estado, porque o carácter caótico dos cortes, a sua ligação conjuntural com as medidas da troika e a escassez de dinheiro não permitem ainda dizer se daqui sairá um menor Estado ou um Estado disforme mais pequeno, mas igualmente poderoso e intrusivo da vida individual e colectiva, das pessoas e da economia. Mas não tenho dúvidas que se está a reforçar uma tendência da partidocracia para também passar para o privado, um privado muito especial, porque se conserva bem dentro da decisão política. Não é nada de novo, mas tem hoje um papel, métodos e dimensão diferentes do passado.


Na próxima semana falaremos em mais detalhe da pergunta certa: por que razão foi escolhida esta pessoa e não outra? 

(Versão do Público de 14 de Janeiro de 2012)

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© José Pacheco Pereira
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