ABRUPTO

2.8.11


O CAMINHO DA UNIÃO EUROPEIA PARA A IMPLOSÃO (2)


Ver O CAMINHO DA UNIÃO EUROPEIA PARA A IMPLOSÃO (1)

Para conseguirmos defrontar a actual crise da UE, tem que se abandonar o quadro idealista que de há muito substituiu a análise política sobre a Europa e que iludia sistematicamente a questão nacional, ou que a enunciava como um anátema a que se devia fugir com sete pés. Aquilo que era pejorativamente chamado "soberanismo", quando não "nacionalismo", surgia como o inimigo da construção de uns Estados Unidos da Europa perfeitos. E surgia muito bem, porque de facto o era.

Só que, sem compreender a questão nacional, o projecto europeísta radical tornava-se numa construção de engenharia política muito frágil, que soçobraria ao primeiro abanão, que nem precisava de ser muito forte. Foi o que aconteceu nos últimos dez anos de delírio da Constituição europeia à Europa que fugia dos referendos com artifícios e manhas, ao "canalizador polaco" e aos tratados inúteis, o malvado de Nice e o bondoso de Lisboa. As avantesmas deste período mutante, de uma Europa atingida por uma radiação bizarra, andam para aí sem se saber para quê, como é o caso do senhor Herman Achille van Rompuy e da senhora Catherine Margaret Ashton, baronesa Ashton de Upholland. Verdade seja que também não se sabe bem o que anda a fazer o senhor José Manuel Durão Barroso. Já a senhora Angela Dorothea Merkel (nascida Kasner) sabe-se muito bem ao que anda: moldar a UE aos interesses alemães, ou pelo menos impedir que ela actue em sentido contrário a esses interesses.

Contrariamente ao que se pensa, em abstracto, não é mau para a UE que esta entre em conta com os interesses nacionais dos seus membros, a começar por aqueles que são os seus membros mais poderosos. Bem pelo contrário, sem essa assunção do interesse nacional, não há eu. E volto de novo aos fundadores que o percebiam com toda a clareza: a Europa não pode ser construída contra as nações, só pode ser uma união livre e de interesse comum das nações, uma Europa das nações, uma expressão que fere os ouvidos europeístas e federalistas.

Por isso, a Europa precisa de uma Alemanha forte e pujante no plano económico e político, até pelo papel que tem em arrastar atrás de si muitas outras economias. O que é mau é que o híbrido que foi criado nos últimos dez anos e a sua retórica de legitimação criaram um mal-estar e um incómodo que, não impedindo a expressão nua e crua do interesse nacional, tornou impossível a sua exibição, a não ser como pecado, de modo ínvio e sous le manteau. O resultado é que cada vez mais a retórica vai para um lado e a realidade para outro e bem podem os europeístas queixar-se da "falta de dimensão" dos actuais dirigentes europeus "que estão a matar a Europa", que o problema é outro e foi em grande medida criado por eles próprios.

O que mostra o desconchavo presente é que se foi longe de mais na engenharia política (e os europeístas ainda hoje querem ir mais longe na asneira...) e isso criou uma Europa que, face a uma crise, não pode ser solidária, porque de há muito se afastou do terreno de entendimento comum que permitiria essa solidariedade. E pior ainda: criou um sistema de governance que não interessa a ninguém, nem aos gregos, nem aos alemães, e que pura e simplesmente não funciona.

A culpa não é da senhora Merkel, nem dos tenebrosos senhores da Moody"s, mas de todos os que fecharam os olhos a um alargamento rápido e que ninguém estava disposto a pagar (na Polónia, por exemplo), a fraudes consentidas como os mil e um truques que países como a Grécia e Portugal aplicavam nas suas contas públicas, na aplicação dúplice do critério dos 3% de défice, ou nas habilidades que a França fez e faz para manter o controlo nacional sobre as suas grandes companhias estatais e para-estatais. Nós vamos acabar com as golden shares, e abrir as privatizações completamente ao exterior, mas nem a França, nem o Reino Unido, nem a Alemanha o fazem. Todos sabiam que a dracma não estava em condições para entrar para o euro, mas fecharam os olhos. Todos sabiam que havia países no centro e leste da Europa que não tinham (e não têm) sólidas instituições democráticas, sistemas judiciais independentes, imprensa livre e independente do poder. Todos sabiam e sabem que não pode haver diplomacia que conte, sem forças armadas, mas avançaram com o Serviço Europeu de Acção Externa, e diminuíram drasticamente os seus orçamentos de defesa. Todos querem uma Europa "forte", mas nos momentos decisivos são os EUA e o braço transatlântico da OTAN que têm o músculo que faz a diferença. É por isso que a Europa acaba por ter que traduzir, muitas vezes mal, as opções dos EUA, que tendem a ser geoestratégicas, mas são difíceis de compatibilizar com a lentidão de um projecto que vai mais longe do que a segurança comum. Eles pensam OTAN, nós fazemos NAFTA. E, por fim, todos sabiam que o modelo de uma Europa que tende a corresponder às suas fronteiras geográficas tem que ter uma política para a Federação Russa, para a Turquia e para o Médio Oriente, e não tem. Só bavardage e asneiras, que tornaram a Europa anti-israelita, empurraram e empurram a Turquia para o instável mundo islâmico e convivem mal com uma Rússia que, pouco a pouco, retoma a diplomacia tradicional das suas áreas de influência.

A única salvação da UE é andar para trás, e não acelerar para a frente. É voltar, se ainda é possível, a um terreno mais sólido de equilíbrio e igualdade nacional, garantindo que todos os países possam ver os seus interesses nacionais vitais protegidos, abandonar a retórica do upgrade europeu (que agora calha bem para os países pobres que estão do lado do receber, se houver federalismo orçamental) e explorar os modelos de consenso que funcionaram bem até à década de 90, mas que se esfacelaram na engenharia política europeísta.

Essa Europa tem a Alemanha como centro e motor, o centro de uma Europa pujante no plano industrial, financeiro e comercial, a chave da riqueza, em Düsseldorf, como em Xangai. Uma Alemanha que, com a unificação, pagou e paga um enorme preço para integrar a antiga RDA, e onde é natural que esses custos pareçam ter mais legitimidade para o eleitor alemão do que o avultado custo de pagar a "coesão" em Portugal, na Grécia e um pouco por toda a Europa que não era contribuinte líquida. A UE, por seu lado, também deixou no essencial o custo da integração da RDA para os contribuintes alemães... Uma Alemanha que tem os poucos centros industriais que podem previsivelmente aguentar por bastante tempo a concorrência chinesa, que produz produtos químicos, máquinas ferramentas, medicamentos, automóveis, assente numa longa experiência de investigação, qualidade e, acima de tudo, de "experiência industrial", das administrações aos técnicos, aos engenheiros, aos operários. Se a pertença à UE continuar a ser para a Alemanha apenas o retrato da sua derrota de 1945 (e conheço poucas frases mais insensatas do que aquelas que dizem que "nós", portugueses e gregos, podemos ser preguiçosos, mas não matamos seis milhões de judeus) e um contínuo pagamento de reparações de guerra sob a forma disfarçada de contribuições líquidas para o orçamento comunitário, a Alemanha tem tantas razões para seguir o seu caminho, como os portugueses e gregos, se forem abandonados nos seus dire straits.

Há que voltar a perceber as nações da Europa e os seus interesses nacionais, porque é só nesse quadro que se pode salvar o projecto europeu. No fundo, esta constatação é bem mais próxima do realismo dos fundadores do que do construtivismo utópico dos "construtores" que se lhes seguiram. 

(Versão do Público de 30 de Julho de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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