Podia escrever sobre a campanha eleitoral em Portugal, mas a 7000 quilómetros de distância não é a mesma coisa. As coisas estão no domínio do pormenor e do detalhe, onde habita o demónio, e esse demónio exige o flavour da proximidade e do contexto, e, estando noutro país, em que, as infidelidades conjugais do Terminator e os anúncios televisivos pagos pelo lobby judeu, a explicar por que razão é agora o Hamas a governar a Palestina, são o demo de cá. Na verdade, falar da dança do de lá sem o sentir perto não é mesma coisa. Podia falar dos debates televisivos, mas sem ver o único que conta não é a mesma coisa. Podia de facto ter a cabeça lá, e tenho muito, mas como o corpo é que paga não é a mesma coisa.
Por isso, deixemos o Inferno, para ir ao Paraíso, vamos aos sítios dos livros, as livrarias, que, por muitos livros que se encomendem na Amazon, vê-los fisicamente ao alcance da mão também não é a mesma coisa. Aqui muita coisa está a mudar, na semana em que a Amazon vendeu mais livros electrónicos do que livros em papel, mas também outras coisas estão a mudar por causa do iPad e dos seus congéneres. É que também aqui o iPad não é a mesma coisa do que por lá, e neste caso o lá é a Europa. Não há comparação possível entre o que é possível obter na loja americana do iTunes e nas lojas europeias, presumo que por causa dos direitos de autor. Não é uma mera diferença, é uma diferença abissal, por isso a "experiência" do iPad europeia é muito menor do que a que qualquer americano pode ter e isso vê-se nas ruas. Digo nas ruas, não porque as multidões de latinos, que se percebe serem o grande contingente dos mais pobres entre os americanos, se passeiem de iPad (porém, nos cafés onde há WiFi, como nos Starbucks, o MacDonald dos cafés, há imensa gente com pelo menos trezentos dólares na mão), mas porque cada vez mais o iPad funciona como instrumento de trabalho, como uma nova consola de jogos especial e como uma combinação de DVD e televisão. Nos comboios, nos aviões, nas viagens mais longas, não direi que está toda a gente de iPad, mas está muita, muita gente e cada vez mais.
Voltemos aos livros, porque pode-se ler num ecrã, mas ler em papel não é a mesma coisa. E não é a mesma coisa por duas razões principais que eu, como leitor compulsivo, e sem nada contra os e-livros, conheço de experiência feita: o texto ficcional, a narrativa, dá-se mal com o hipertexto, a glória da Net; e porque, quando se tem que consultar livros e andar para trás e para a frente à procura de uma passagem ou de uma frase, o livro em papel é melhor e mais rápido. Por isso, a Amazon não chega, mesmo para o mercado dos livros em inglês, e esta é uma das razões por que nunca percebi que, com medo da Amazon, que é o argumento que mais tenho ouvido dos livreiros, não haja nenhuma livraria inglesa em Lisboa, para que penso existe mercado. Pelo menos para uma, como em todas as cidades europeias.
Por isso, voltemos ao Paraíso, começando por aqueles que dele estão excluídos, as livrarias em crise, as livrarias que vão fechar. O melhor exemplo dessa crise é a grande cadeia de livrarias da Borders, que ainda tem muitas lojas abertas, mas que está póstuma. Entrei numa dessas livrarias, que serve os clientes dos jogos no Madison Square Garden, os viajantes na Penn Station e a massa eclética de gente da 7.ª Avenida. Entra-se na Borders e percebe-se que está morta, tudo está coberto com um pó muito especial mesmo estando limpa. Esse pó é uma falta de dinamismo, uma incúria na arrumação, uma falta de atenção ao detalhe, uma estandartização forçada, que, numa grande livraria americana, é imediatamente visível e mortal. Está lá tudo como nas outras, as mesas habituais na entrada, a "nova ficção", a "nova não-ficção", os novos paperbacks destas duas categorias, as estantes organizadas como habitual, mas, quando se entra na Barnes and Noble, uma centena de metros ao lado, percebe-se a diferença. E como eu tenho um cartão da Borders, também sei como a minha caixa de correio está cheia de apelos a que compre na Borders, com 50% de desconto, ou anunciando-me o fecho de uma qualquer loja na província, ou nos subúrbios da cidade, com tudo a preço de saldo.
Mas como numa vez anterior falei das grandes livrarias americanas (o texto está acessível no Abrupto), falarei hoje duma outra espécie ameaçada de extinção: as pequenas livrarias radicais, ligadas aos movimentos da contracultura, às questões do género, feministas, vegan, a movimentos em defesa dos animais, a movimentos sociais, quer laborais, quer de defesa dos emigrantes, e a movimentos políticos radicais, do anarquismo ao comunismo, em todos os matizes. Já foram muito mais abundantes e muitas desapareceram, mas algumas resistem, constituindo locais comunitários, muito mais do que apenas livrarias. É um mundo que visito com regularidade e cada uma é um caso à parte, com uma forte identidade própria, e muito diferentes umas das outras.
Vejamos dois casos, a Revolution Books em Nova Iorque e o Lucy Parsons Center em Boston. A de Nova Iorque é maoísta, a de Boston é anarquista e não pode haver maior diferença no aspecto de uma e de outra, no seu interior, no que se pode perceber da sua organização interna, dos seus clientes, e nas actividades a que dá guarida. A livraria anarquista de Boston é um caos, a maoísta de Nova Iorque a personificação da ordem. Dois mundos.
A livraria anarquista, uma velha sobrevivente dos anos 60, expõe uma enorme variedade de panfletos com a mais diversa origem, sem cuidar de qualquer orientação ideológica especial, indo desde os movimentos de solidariedade com as mulheres afegãs à literatura queer, a diários em formato de fanzine de raparigas bissexuais vivendo num subúrbio qualquer com demasiados filhos vindos cedo de mais e receitas de chocolate para famílias gigantes ao anarchist cookbook, que ensina a fazer bombas caseiras. Tudo está colocado de forma mais ou menos caótica, panfletos, fanzines, jornais, revistas, apenas com uma relação aparente. E fazer uma conta extensa é um problema de muito tempo, pois o voluntário que lá está demora séculos a encontrar preços e a preencher uma detalhada factura. Esta tem Visa, mas há algumas livrarias anarquistas em que só com dinheiro à vista.
A livraria de Nova Iorque, a Revolution Books, é uma espécie muito mais rara e com muito maior risco de extinção do que as livrarias anarquistas. A Revolution Books está ligada ao mais importante grupo maoísta americano e um dos poucos que conseguiu sobreviver, o Partido Revolucionário Comunista, e existem várias por todos os EUA, em Chicago, Boston, Berkeley, etc. Tudo é cuidadosamente mantido, limpo (as anarquistas deixam muito a desejar na limpeza), e o espaço organizado, com grande destaque para as obras e a figura do "camarada Bob", o que se segue a Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mao Zedong. Bob Avakian, cujas obras em inglês e espanhol cobrem metade da livraria, acabou agora de editar uma espécie de livro de citações como Mao Zedong e a obra merece o maior relevo nos expositores. Mas há mais: há T-shirts e pins com o camarada Bob, e livros sobre a importância da sua obra para a revolução mundial. Na parte que sobra há uma escolha cuidadosa de obras dos clássicos do marxismo-leninismo, sobre a China, sobre as lutas no Terceiro Mundo, sobre poesia e literatura revolucionária, assim como bancas com o jornal do partido, em edição bilingue. Literatura LGBT ocupa uma modesta fila de estante, que não chega a encher e são só livros, o que faz uma enorme diferença com a pletora de livros, panfletos, cartazes, boletins comunitários sobre lésbicas, homossexuais, bissexuais, transexuais, que enchem as paredes e as estantes do Lucy Parsons Center. E na Revolution Books também não há lugar para os livros de cozinha vegan, nem para manuais de tricot, ou para as reuniões do clube de leitura feminista do bairro, mas sim estudo dos clássicos e da obra do camarada Bob para os jovens negros e latinos de Nova Iorque.
Bom, parece que estou fora de Portugal, mas não estou. É que mesmo estando muito por cá, a 7000 quilómetros, estou demasiado por lá. Poder fugir podia, mas fora da pátria não é a mesma coisa. Regresso para votar.