ABRUPTO

29.11.10


O MUNDO DAS GRANDES LIVRARIAS AMERICANAS


Uma grande livraria americana é um mundo muito próprio e pouco semelhante ao das livrarias europeias. O “grande” aqui significa grande em espaço, não necessariamente em qualidade, embora essa relação exista. Refiro-me ao modo como o espaço interior é organizado e a um “espírito” da livraria diferente, a começar pelo modo como ela é “habitada” pelos seus leitores. Trato essencialmente de cadeias de livrarias, mais ou menos estandardizadas, e nessas cadeias à principal livraria em espaço urbano e não às mais pequenas filiais. Também não me refiro aqui às livrarias mais pequenas, cuja identidade vem de muitos outros factores, nem aquelas que vendem livros usadas, mesmo não sendo alfarrabistas.

De facto, o espaço conta. Uma Barnes and Noble, uma Borders, são mesmo grandes, embora aí não esteja a diferença essencial com outras grandes livrarias europeias, como por exemplo, a Waterstones de Londres, ou as FNACs de Paris, Madrid ou Lisboa, que tem também muito espaço mas outro “espírito”. Isso não significa que não haja também nos EUA livrarias europeias, mesmo onde menos se espera. Por exemplo, a grande livraria da Coop de Harvard é muito europeia, mais parecida com as livrarias de Oxford e algumas de Londres, do que com uma Barnes and Noble.

O espaço de entrada é fundamental. De um modo geral, as livrarias americanas valorizam o espaço inicial, o espaço de entrada, com grandes expositores. O papel dos expositores é mais importante numa livraria do que as estantes, porque o grosso dos livros comprados por um flâneur de livrarias são os que estão expostos. Às estantes vai quem quer um livro muito preciso e é cada vez mais difícil ver as secções e subsecções de uma zona devido ao crescente número de livros. Por exemplo, uma secção de “current affairs”, assuntos correntes, política viva, encontra muito dificilmente uma ordem natural para quem procura. A organização por ordem alfabética é sempre pior para um flâneur do que a temática, embora para uma procura de um determinado livro seja pior. Por exemplo, querendo livros sobre os “terceiros partidos”, ter que andar a procurar por autor numa estante por ordem alfabética implica anotações prévias, que é um modo de ir às livrarias em que estas não tem qualquer vantagem face à compra na Internet. Se as livrarias querem sobreviver, só pode ser cativando aquele que anda só “a ver o que há”, que é a resposta que dou à irritante pergunta, para mim, se quero ajuda, feita por um empregado mais solícito que confunde o flâneur com o perplexo.

Por isso, as vastas filas de expositores com novidades, organizadas por ficção e não ficção, novidades-novidades e novidades em paperback, acompanhadas pelas escolhas do pessoal (uma forma de tornar intimista o espaço gigantesco da livraria e de mostrar que o pessoal não está ali a vender livros como salsichas), e pelos tops, com relevo para o do New York Times, mas também temáticos, economia e história por exemplo, são uma verdadeira introdução à livraria e quase sempre compro aí os primeiros livros. No mesmo espaço de entrada há revistas e jornais, uma secção importante muitas vezes especializada na área literária, com a multiplicidade de revistas literárias e de crítica. Nas revistas permanece a divisão que devia horripilar as feministas entre revistas de “interesse para as mulheres”, da moda ao mundo cor de rosa, e de “interesse para os homens”, também já com moda e mulheres pouco vestidas no contexto da “cultura” masculina yuppie. Outra diferença que se observa com o tempo, é o elevado número de revistas sobre comida, e o número cada vez menor de revistas de computadores. Muito Linux e Apple, muito manuais de gadgets e algumas revistas mais técnicas, mas cada vez menos.

Nas caixas, que também estão nesta zona inicial, há toda uma parafernália de objectos que tem a ver com a leitura, lupas, lâmpadas, marcadores, bonecos de literatura infantil, alguns livros miniatura, e agora cada vez mais e-readers. Como se está numa fase de luta entre e-readers, com o aparecimento de leitores dedicados como o Nook ou o Kindle, e cada livraria promove o seu agressivamente. Umas vezes na entrada, noutras nos andares superiores há uma secção de papelaria resumida a envelopes e postais, pouco atractiva.

Existem algumas destas “entradas” com secções de livros de bolso, as excelentes séries de clássicos da Pelican e da Penguin, e mesmo num assomo de erudição, algumas livrarias tem uma estante com a edição da Loeb dos clássicos gregos e latinos em edições bilingues. Nas cidades em que o turismo é importante, é também na entrada que estão os guias e os livros de interesse local, mapas e livros ilustrados. Mas, passada a entrada, há toda uma série de secções, algumas ocupando andares inteiros, cobrindo a ficção, quer a clássica, quer as novidades, a biografia, uma secção muito anglo-saxónica e popular, a história, os “assuntos correntes” e depois muitas secções mais especializadas algumas com nomes latinos como a Americana, a Judaica, ou a Militaria. Em países como os EUA em que as forças armadas entraram em várias guerras, há sempre, como em Inglaterra, uma grande secção de estudos militares, cobrindo os conflitos (começa a haver uma secção para o Vietname que antes não existia) e detalhes das unidades militares, como as “operações especiais”. A espionagem tem também uma boa parte de uma estante.

A parte respectiva às religiões é também importante, dividida por fé, cristandade, judaica, islão, budismo, etc, e as secções de sociologia e antropologia são menores comparadas com a literatura religiosa. No âmbito das ciências sociais costuma haver também boas secções sobre media, incluindo vários livros populares sobre séries televisivas de culto, os Soprano, Twilight Zone, House, e sobre filmes. Depois há secções típicas, como a parte do “Gay and Lesbian interest” ou a enorme quantidade de livros sobre auto-ajuda, doenças, saúde, gastronomia, desportos e coleccionismo (muita numismática e pouca filatelia), carros, rendas, antiguidades, histórias aos quadradinhos, cromos de jogadores de baseball, etc. Os livros de arte não são muito abundantes, talvez porque o seu peso e preço, os tornem mais atractivos para o público das livrarias dos museus de arte, onde há excelentes colecções para escolher. A secção infantil tem muitas vezes um pequeno espaço para crianças, mas o que faz o seu êxito é o enorme boom de qualidade, particularmente gráfica dos livros infantis.

Por todo o lado das livrarias há gente sentada no chão a ler, ou em sofás distribuídos com abundância, com mesas ou sem mesas, o que, para além do omnipresente Starbucks, também sempre muito frequentado, faz muito do ambiente da livraria. Ah! e há Wi-Fi gratuito. Ou seja, as livrarias fazem muito para que o seu espaço seja habitado e não apenas para que se entre e compre um livro, e este ambiente faz muita diferença. A informalidade da sociedade americana torna inimitável muito desta organização de espaço, que algumas livrarias europeias tentam copiar com menos sucesso. Eu gosto muito da Waterstones e da Tropisme de Bruxelas, mas não me passa pela cabeça “estar” lá. Nas grandes livrarias americanas, para além da organização peculiar dos seus livros, passeia-se e está-se. É uma grande diferença.

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© José Pacheco Pereira
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