ABRUPTO

31.3.11


LÓGICA PARTIDÁRIA E LÓGICA NACIONAL (2) PSD



Continuemos agora com o PSD a análise da lógica partidária versus a lógica nacional no meio da crise actual económica, financeira, cultural e política. Embora nas acções dos dois partidos seja preponderante a lógica partidária, PS e PSD têm diferenças importantes no modo como essa lógica se manifesta. Enquanto a lógica partidária do PS se desenvolve a partir do poder, do Governo, a lógica partidária do PSD desenvolve-se a partir do partido, o que faz uma diferença significativa. Sócrates actua para o partido a partir do Governo, e isso, na situação actual dos partidos como o PS e o PSD, significa que, enquanto se está no governo, o partido não é existente, é puramente instrumental e a contestação interna é muito débil, como o é no actual PS. Pelo contrário, Passos Coelho tem o grosso das condicionantes da sua actuação no partido, e a lógica da sua acção implica muito mais factores internos do que externos.

Se tivermos em conta o que foi o programa escrito e não-escrito (o que está presente nos actos) de Passos Coelho na sua ascensão ao poder no PSD, encontramos vários traços determinantes. Um, é a sua afirmação contra Manuela Ferreira Leite na base de um programa "optimista", desenvolvimentalista, muito semelhante ao de José Sócrates, incluindo mesmo esse projecto simbólico que era o TGV, que Passos Coelho defendeu contra a então líder do partido. Várias vezes se criticou Manuela Ferreira Leite de "negativismo" face ao país, de exagerar na afirmação da crise, de não ter soluções a propor e de não fazer uma oposição baseada em projectos alternativos ao PS. Hoje reconhece-se acontrecoeur a sua razão.

Embora Passos Coelho nunca tenha ido muito longe na afirmação dessas alternativas programáticas, antes e depois, a verdade é que esboçou um programa de pendor tecnocrático, que continha alguns elementos liberais, como por exemplo a privatização da CGD e da RTP. Mais tarde, esse mesmo programa apareceu na revisão constitucional e no livro das 365 medidas, mas quando as propostas começavam a gerar controvérsia, seguia-se sempre um recuo. À volta de Passos Coelho começaram a gravitar personalidades oriundas dos meios económicos e empresariais que sempre tinham mostrado grande vontade de intervenção política, como elementos do Compromisso Portugal, e novos sectores ligados aos blogues e à comunicação social, onde Passos Coelho detinha uma influência considerável. Sendo um homem de partido, conhecedor dos mecanismos de poder interno, contava também com os "grandes eleitores" no aparelho partidário, que lhe deram um poder que, por si só, nunca teria conseguido. A composição dos órgãos partidários mostra o peso desses sectores, que são a sua base de apoio partidário, dividida que foi a JSD, a sua base de origem.

Beneficiando do beneplácito do PS, este grupo foi sempre protegido dos ataques mais duros que Manuela Ferreira Leite e a sua direcção sofreram, e responderam em espécie protegendo José Sócrates das sucessivas fragilidades em que se ia metendo, quer com as suas incongruências biográficas, quer no envolvimento, ainda longe de estar esclarecido, em casos como o Freeport. A mesma protecção foi dada a José Sócrates no caso da conspiração para controlar a comunicação social, o chamado "caso TVI". Passos Coelho várias vezes se opôs àquilo que achava serem ataques "pessoais" e "de carácter" a Sócrates, até que, recentemente, mudou de ideias e chegou a afirmar que nunca mais se reunia sozinho com o primeiro-ministro, porque não confiava na sua palavra, e a considerar que este "mentia" sistematicamente.

Chegado ao poder no PSD, Passos Coelho encontrou-se com um problema que era comum ao primeiro-ministro: a margem de manobra nacional de governação tornava-se cada vez mais débil, e isso obrigava-o a ter que fazer entendimentos sobre medidas de austeridade muito impopulares e, pelo caminho, a abandonar algumas das suas propostas mais liberais, a começar pela privatização da CGD. Passos Coelho compreendeu que não havia possibilidade de deixar de apoiar o Governo nessas medidas, nos PEC e nos Orçamentos, e seguiu aqui uma lógica nacional, permitindo a sua aprovação. Porém, em vez de definir uma estratégia de conjunto para esta situação de perda de margem de manobra do PSD, que era evidente desde que ganhou as eleições partidárias, preferiu uma apreciação pontual das medidas e passou a seguir uma táctica de cada vez maior confronto verbal e político com o Governo socialista. Esta maneira de actuar tinha um efeito esquizofrénico e diminuía cada vez mais a margem de manobra do PSD, de crise em crise.

Enquanto na proposta de Manuela Ferreira Leite a demarcação da política do Governo era feita independentemente do fornecimento de condições de governabilidade - ou seja, o PSD abstinha-se por razões nacionais nos documentos essenciais à governabilidade (principalmente nos Orçamentos, repetindo o que Marcelo Rebelo de Sousa tinha feito com Guterres no período pré-euro) -, mas mantinha independência crítica em relação à governação, Passos Coelho passou a uma política errática de avanços e recuos, que provocava uma exaustão na sua capacidade de manobra e negociação. Começava sempre por posições irredutíveis (no Pontal, afirmando que nunca permitiria uma aumento de impostos; em várias afirmações sobre a revisão constitucional) seguidas por complexos recuos para não perder a face. E como os pedidos de desculpa só se podem fazer uma vez, e recuos complicados como no Orçamento são irrepetíveis sem ridículo, acabou por chegar à crise actual sem qualquer capacidade de maleabilidade, nem sequer para tomar uma iniciativa que desmontasse a armadilha que o PS tinha montado. Não era sequer muito complexo e era bem mais próximo do interesse nacional que à chantagem e humilhação feita pelo PS o PSD respondesse à irlandesa: nós permitimos a passagem do PEC, nas condições de facto consumado com que nos foi apresentado, mas em contrapartida vamos depois para eleições sem ser sobre o espectro de uma crise dramática das nossas finanças. Fazia toda a diferença.

A vitória de uma lógica partidária neste caso vem do facto de as decisões tomadas terem muito mais a ver com a manutenção da "imagem" da liderança, que se pensava sair muito desgastada por mais um acto de suporte a medidas impopulares, e com a impaciência do partido com eleições. Um longo período de sondagens muito favoráveis, associado a um também longo afastamento do poder, face a um adversário fragilizado são um poderoso factor de atracção do aparelho para a procura imediata do poder. Como refere a imprensa, um dos seus membros da direcção "grande eleitor" - um eufemismo. claro está - terá dito: "Ou vamos para eleições lá fora, ou tens eleições cá dentro." Continuo a fazer a justiça a Passos Coelho pensando que o principal impulso não partiu dele próprio, mas posso estar enganado.

A vitória de uma lógica puramente partidária sobre uma lógica nacional revela-se no facto de nenhuma destas acções ter como base a consciência da gravidade da crise nacional e a sua interiorização na acção partidária. E abandona-se o mais puro bom senso, que é a evidência de que ela tem de ser defrontada pelos partidos com base na procura de entendimentos. Entendimentos de dois terços no plano parlamentar e acordos sociais, para permitir conjugar a austeridade com alguma justiça social e algum desenvolvimento, permitindo a estabilidade das políticas, são a essência da única política nacional face à crise.

A ideia de gloriosas rupturas, buscada sem rigor histórico no exemplo das rupturas de Sá Carneiro, esquece que hoje as condicionantes fundamentais da acção política estão fora de Portugal, e que o país para conseguir coisas tão mínimas como combustíveis para os seus automóveis, rações para os seus animais, medicamentos para os seus hospitais, e salários para os seus funcionários depende de ir pedir dinheiro emprestado, que cada vez mais escasseia. E esquece que o "governo económico-financeiro" passou para Berlim e Bruxelas e que as mesmas condicionantes que o PS tem hoje terá o PSD amanhã, ou piores ainda. Nesta crise de longa duração e muito dura, nem o PS consegue governar contra o PSD, nem o PSD o consegue contra o PS, e isto é tão evidente quanto está ausente da acção político-partidária. Mas no meio desta cegueira e da corrida de bandeirinhas rosa e laranja que se prepara, a nossa democracia depende desse entendimento.

(Versão do Público de 25 de Março de 2011.)

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]