ABRUPTO

25.3.11


LÓGICA PARTIDÁRIA E LÓGICA NACIONAL. 1. PS


O título deste artigo contém uma parte em que estamos em terreno seguro, "objectivo", e outra muito mais complicada e "subjectiva". Na verdade, se não é difícil compreender e expor aquilo que possa ser considerada uma lógica de interesse partidário, que depende apenas de uma faculdade analítica, já é muito mais complexo definir o que é uma lógica "nacional" numa democracia. Esta definição envolve uma interpretação que, é pela sua própria natureza, controversa. Em bom rigor, pode até pôr-se em causa a possibilidade de se falar de uma lógica "nacional", que esteja para além da rede de interesses que estão representados no sistema partidário e noutros mecanismos de representação social, orgânicos e inorgânicos. Por isso, o exercício que se vai fazer implica riscos de análise (numa parte) e depende da pura opinião/interpretação do seu autor (na outra).

Tentemos, neste momento de crise, identificar na acção política os factores de lógica de interesse partidário que se podem encontrar nos eventos em curso, por parte do PS e do PSD e depois noutros actores políticos. Deixemos para o fim a correlação entre estas lógicas de partido e a lógica nacional.

Comecemos pelo PS. O PS está muito consciente da enorme usura que sofre na sociedade portuguesa resultante dos efeitos (reais ou atribuídos) da governação de José Sócrates e considera como muito provável a perda, a prazo curto, do poder, após um longo período no seu exercício. O PS sabe que o seu secretário-geral e primeiro-ministro, José Sócrates, polariza em termos pessoais uma enorme onda de descontentamento e de agastamento, maior do que a rejeição do próprio partido. Mas sabe também que pelas suas qualidades tribunícias, energia, combatividade e oportunismo táctico, José Sócrates é uma vantagem sobre adversários que não tenham o seu estofo, determinação e, diriam os seus opositores, "falta de vergonha". É ao mesmo tempo um trunfo e uma desvantagem.

Sabe igualmente que, com Sócrates a mostrar não ter intenção de ceder o seu lugar a ninguém no PS sem uma luta tão feia como aquela que ele trava com os seus adversários, não pode proceder a uma substituição pacífica de liderança. Esta substituição podia ser racional, porque diminuía o tom de rejeição que Sócrates provoca e potenciava o efeito da novidade. Na verdade, há mais rejeição de Sócrates do que do PS. Porém, nenhum candidato interno oferece nestas circunstâncias a capacidade de "máquina eleitoral" que Sócrates oferece, mesmo ferido pela hostilidade que gera.

Por sua vez, Sócrates actua com uma lógica pessoal que, não sendo inteiramente sobreponível à do PS, oferece a este último a única saída para a actual difícil situação que atravessa: uma fuga em frente, com riscos, mas altamente motivada pela convicção de Sócrates de que o seu voluntarismo pode ganhar eleições ou perdê-las por pouco. Sócrates sabe que a ajuda externa com o rótulo do FMI é inevitável, sabe que a margem de manobra de decisões governativas está reduzida ao mínimo, sabe que o seu Governo está impotente e desgastado, sabe que o Presidente lhe é hostil e desconfia dele, e sente-se preso, atado, manietado, por todas as circunstâncias. E sabe que o PSD só espera a melhor oportunidade para o fazer cair. Ora, a última coisa que Sócrates quer é dar aos seus adversários "melhores oportunidades".

O factor de aceleração dos eventos vem do conhecimento da inevitabilidade da ajuda externa, da "entrada do FMI", que para ele seria uma perda de face e uma humilhação. Nos últimos meses tem vindo a desenvolver uma legitimação da sua actuação com a ideia de que esta se destina a "salvar o país e evitar a ajuda externa" e com isso justifica todos os PEC que apresentou. É uma boa bandeira, se fosse verdade e se fosse possível. Mas as últimas semanas de juros altos e a contínua relutância alemã (e holandesa, finlandesa, francesa, etc.) de encontrarem mecanismos europeus de financiamento da dívida sem o rótulo do FMI tornaram inevitável a derrocada da bandeira. Ele sabe-o melhor do que ninguém e gizou uma estratégia de fuga em frente, que é, do ponto de vista da lógica partidária e pessoal, muito eficaz.

No essencial, Sócrates (e consigo o PS que este impulso mobiliza mais do que o pântano anterior) decidiu caminhar para eleições o mais cedo possível, no seu tempo, nos seus termos e no contexto do seu cenário. Este assenta em dois momentos: a apresentação, de forma provocatória e chantagista, de uma proposta inaceitável pela oposição, em particular pelo PSD; e, depois, desenvolver a partir dessa rejeição uma dicotomia simples, fácil de explicar, verosímil e que acima de tudo assenta numa self-fulfilling prophecy, ou seja, realiza-se sempre. Esta self-fulfilling prophecy é da inevitabilidade da intervenção externa, que será a partir de agora resultado já não da sua política, mas das acções dos outros, principalmente do PSD. A "entrada do FMI" mudou de culpado. O Fundo agora já pode entrar, porque entrará sempre por culpa dos seus opositores e, no plano da retórica política, este é o argumento eleitoral central com que vai a eleições: "Eu quis salvar o país, apresentei um PEC que foi unanimemente elogiado na Europa e pelo BCE, e a oposição, o PSD, recusou-o, entregando o país ao estrangeiro." "Eu sou patriota, eles são traidores, como se vai ver." E vai.

O PSD mordeu o isco, porque nunca aplicou aquilo que Manuela Ferreira Leite sempre propôs em relação às políticas do PS: nunca se comprometer com elas directamente, mas assegurar a governabilidade com a abstenção sistemática do PSD nos grandes documentos de orientação económico-financeira. Assim o partido nunca seria obrigado a um caucionamento subjectivo de políticas, aceitando estas e negando aquelas, umas vezes comprometendo-se com a governação, outras vezes contragovernando. O PS poderia assim governar em minoria, como fez Guterres, e o PSD manteria uma autonomia face às suas políticas que poderia criticar de forma sistemática sem ser acusado de obstrução a um governo legítimo, acima de tudo em momentos muito críticos da vida nacional.

Ao dizer não ao PEC, como tinha que dizer devido ao modo como ele foi apresentado, e ao não ter tomado a iniciativa de fazer uma proposta alternativa que alterasse os termos da dicotomia que Sócrates impunha, e assim tomar a iniciativa, o PSD caminha para eleições no termos desejados pelo PS e por José Sócrates. Quer num caso, quer noutro, estamos no domínio de lógicas essencialmente partidárias, nenhuma das quais tem no seu centro a gravidade da crise que atravessamos e a necessidade de a resolver.

Em seguida, prosseguimos com o PSD.

(Versão do Público de 19 de Março de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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