ABRUPTO

6.11.10


HÁ UNS ANOS ATRÁS SERIA FICÇÃO CÍENTIFICA

Equipamento usado na série Star Trek.

Numa viagem recente ao Luxemburgo para fazer uma conferência resolvi, com uma velha atracção pelos gadgets a que nunca resisti, comprar um iPad. A coisa ainda não está à venda em Portugal, um bom sinal da nossa irrelevância como mercado, mas, presumi eu, que um país que tem mais de cento e cinquenta bancos em fila numas avenidas, teria certamente uma loja da Apple. E presumi bem. Havia uma loja, muito pequena e pouco espectacular, mas com tudo o que era preciso. Em menos de um quarto de hora escolhi o modelo, uma capa protectora e paguei uma exorbitância nestes tempos de escassez. E saí como glorioso possuidor de um iPad.

O dito iPad é o do topo de gama, muitos gigabites, Wi Fi e 3G, fruto da mesma pulsão para experimentar gadgets que me fez ter todos os modelos de computadores, começando no Spectrum com 48K, seguido de uma Amstrad 386, mudando de cada vez que a Intel fazia um novo chip, por aí adiante. Todos desktops, porque gosto da minha casa electrónica solidamente ancorada no chão e com espaço, monitores amplos, muitas entradas USB e discos duros por todo o lado. Para juntar à maravilha de ter estas máquinas e o que elas podiam fazer, veio a Internet de que também fui (em conjunto com Ferreira do Amaral e José Magalhães) um dos primeiros utilizadores fora dos meios científicos e tecnológicos. Ainda a rede não era WWW e não era gráfica, mas, quando pude consultar pela primeira vez uma base de dados de uma universidade americana sobre Dante, com a Commedia em linha, mais os comentários, as notas, e as fontes do autor, o caminho para uma forma muito especial de felicidade perfeita abria-se à minha frente e nunca me deixou ficar mal. Quem viu isto tudo percebe muito bem que a ficção científica é muito menos ficção do que a literatura policial. E mais rápida.

O iPad não é em si um aparelho revolucionário, não traz nenhum avanço que por si só se possa dizer que mudou o panorama das tecnologias, nem no hardware, nem no software. Não é como a World Wide Web, ou o IBM PC, ou o rato, ou o Windows, ou o MS DOS, ou o telefone celular. Mas é como o Ford T, ou o recém-defunto Walkman, uma máquina fazendo melhor uma multiplicidade de tarefas que até então estavam dispersas em várias máquinas, ou usavam os nossos sentidos fora dos limites do conforto, como era o caso dos ecrãs minúsculos dos telefones. É verdade que o iPad não é um telefone, nem tem uma máquina fotográfica, comparando-se, neste caso em desfavor, com o seu primo iPhone, com que tem muita coisa em comum. Não é também um computador, nem sequer um tablet-computer, um primo muito mais distante do que o iPhone, e é altamente improvável que muito daquilo que faço com um computador possa ser feito no iPad, como, por exemplo, processamento de texto, inserir dados, tratar informação.

Mas não foi para isso que o comprei. Foi mesmo como gadget, meio brinquedo para adultos e no outro meio, competindo com a televisão, com o telefone móvel, e com o computador, num conjunto de tarefas que faço com outro conforto noutros lugares, em viagem, sentado, à espera num jardim, deitado, nas tenebrosas esperas num aeroporto, num café. É verdade que não posso meter o iPad no bolso, mas como toda a vida andei de pasta, ou com livros e jornais na mão, ter mais um pequeno volume não me incomoda nada.

O que é que faço melhor no iPad? Para começar várias coisas que fazia no telefone e no computador. Mal o comprei, passei a usá-lo, no meio das minhas itinerâncias, para ler o email e percorrer a Rede. Mesmo com o telefone no bolso, o iPad oferece um espaço mais adequado ao nosso sentido da visão e com a qualidade do seu ecrã o telefone perde a competição. É só socialmente um pouco bizarro pegar num iPad, em vez da mais aceitável e habitual consulta às mensagens num telefone. Mas aqui é o espaço que conta. Muitas vezes se esquece, no meio de um certo deslumbramento com as máquinas, que a interface humana, para usar o jargão habitual, está limitada pelos seus sentidos. A visão, em particular, precisa de um espaço mínimo, que nos telefones, mesmo com o ecrã máximo, está limitado pela portabilidade do aparelho.

Depois há as "aplicações" os pequenos programas que se podem obter de graça, ou quase de graça na loja da Apple. Fiel ao carácter lúdico para adultos ou adolescentes retardados que penso ser a chave do sucesso do iPad, importei logo um barómetro, um termómetro, um sismómetro, um mapa das estrelas, uns programas meteorológicos, relógios vários, e, armado deste pequeno laboratório, passei a dominar a natureza à minha volta. E essa natureza fixada nas coordenadas do GPS passou a poder ser vista de cima em tempo quase real, o que, somado aos mapas que também importei, mais os horários dos comboios e dos aviões, e as redes de metro, me tornam no turista perfeito. Somando a isso os programas do género "around me", não me perco jamais, a não ser na barbárie. Nas terras civilizadas já se pode saber que livrarias estão na rua ao lado. No entanto, dentro das livrarias perdi uma funcionalidade que ainda está no meu iPhone: um leitor de barras que me permite armazenar os dados dos livros que penso vir a encomendar depois. O problema é que depois de os ler no código de barras e guardar a informação, acabo por os comprar logo a seguir na livraria. Não sou muito da escola dos prazeres adiados.

Por falar em livros, duvido que alguma vez utilize o iPad como ebook. Enchi-o logo com uma série de "aplicações", que incluem a Vulgata, as fábulas de Fedro, Shakespeare, Dante e Tolstoi completos e umas antologias de poesia. Mas se consulto os textos, não os leio no iPad. O mais longe que fui em extensão de texto lido foi com a Vulgata, mas mais pelo fascínio do texto latino que me levou a ler o Genesis todo, em que praticamente cada frase é uma citação conhecida.

Mas o must são os jornais, as televisões em linha, as rádios na Internet, tudo já acessível num computador ou num telefone, mas que a optimização para o iPad torna realmente consultável sem esforço. E o must dos must é o YouTube no iPad. Que se podem passar horas no YouTube já se sabia. Que o You Tube funciona como um canal de televisão alternativo também. Mas onde o iPad brilha é na possibilidade de pegar na máquina, levá-la para um sofá ou para uma cama e perdermo-nos numa forma muito especial de zapping, uma vez uma cena dos Monthy Python, outra do Yes, Prime Minister, outra uma cena do Hamlet com Richard Burton. Ao YouTube acrescento o número crescente de vídeos e podcasts académicos, no iTunes U, que permitem assistir, por exemplo, a um curso de Yale sobre filosofia política, ou a aulas sobre astronomia.

O meu primeiro fragmento do YouTube no iPad foi uma cena do Swing Time, em que não há palavras para descrever o voo que Fred Astaire e Ginger Rogers fazem com o corpo a dançar. A preto e branco o ecrã brilha de qualidade e a partir daí percebe-se que o iPad passou a ser uma forma muito especial de se estar com o mundo todo. Como diria Hegel, o "espírito das máquinas" repousou no iPad da sua incessante viagem numa forma quase perfeita.

(Versão do Público de 30 de Outubro de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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