ABRUPTO

7.10.10


O DISCURSO REPUBLICANO

(dito na Assembleia da República, 6 de Outubro de 2010.)

Os 100 anos da instauração da República, que comemoramos hoje, realizam-se numa altura difícil para os portugueses, que não estão muito voltados para comemorações, muito menos para aquelas que lhes podem parecer uma forma de legitimação de um estado de coisas nacional em que os mais pobres estão a ficar mais pobres e a maioria dos portugueses vê roubada a sua esperança no futuro.

Por isso, as comemorações da República, temos que o reconhecer, não foram um momento de grande participação popular, sem que isso signifique existir qualquer nostalgia pelo regime monárquico, cuja queda foi a principal consequência duradoura dos eventos de 5 de Outubro de 1910. Desse ponto de vista, a revolução republicana deixou os portugueses na plenitude dos seus direitos de escolherem quem os governe, sem que, por razões de casta, família ou sangue, não pudessem escolher o primeiro magistrado da nação. Os portugueses hoje podem eleger todos os responsáveis políticos, isso foi conquistado há 100 anos, e é um adquirido da nossa liberdade e democracia.

Tudo o resto dos tumultuosos dezasseis anos da Primeira República é, como todos os humanos regimes, matéria mais de repúdio do que de exemplo. Mas, se a mitificação da Primeira República é um erro, seria um erro ainda maior usar a sua crítica para abrir caminho à legitimação da ditadura.

O que é que podemos saber hoje com base nesses dezasseis anos de 1910 a 1926?

Primeiro, que os regimes acabam, que o que pensamos adquirido está bem longe de estar seguro. A liberdade política e uma débil democracia, construída em Portugal desde as lutas liberais, pôde acabar às mãos dos próprios demónios que soltou. Os republicanos, que eram positivistas, pensavam que o progresso era inelutável. Nós sabemos, depois das guerras do século XX e do Holocausto, que não é assim.

Segundo, que a democracia só subsiste se as instituições em que se baseia mantiverem um mínimo de legitimação popular. Nenhuma democracia sobrevive quando o povo a vê como um “sistema”, uma rede estabelecida de interesses, assente numa oligarquia que deles beneficia. A democracia não é um facto natural, mas uma escolha cultural e a sua legitimação vem da vontade popular. Sem essa vontade tem os dias contados, seja para uma nova ditadura, seja para formas modernas de populismo demagógico, para que muito do mediatismo espectacular hoje nos empurra.

Terceiro, das instituições políticas cuja saúde é mais crucial em democracia são os partidos. É neles, na pluralidade política e ideológica, na diversidade dos interesses representados, que se consubstancia o tónus da vida pública e do debate cívico. Infelizmente essa capacidade está rapidamente a desaparecer, com uma degradação acentuada do papel dos partidos, em particular dos partidos do poder, de exercerem a sua função cívica de representação, dominados apenas por uma lógica de exercício desse mesmo poder.
Os partidos políticos republicanos tiveram muita responsabilidade na queda da Primeira República. A Terceira República, em que vivemos, degenera também pela partidocracia, quando os partidos em vez de serem um elemento de representação dos cidadãos no poder, funcionam como uma barreira.

Quarto, em período de crise económica e social, nada envenena mais a democracia do que a corrupção e em particular a corrupção na desigualdade. Isto é tão evidente que não vale a pena acrescentar mais nada. É, aliás, tão evidente como perigoso.

Quinto, a economia de mercado e as finanças públicas são a chave do crescimento e do desenvolvimento social, tão relevantes num país que continua na cauda da Europa em termos de pobreza e desigualdade, e que conhece elevadas taxas de desemprego. A boa gestão da coisa pública, numa altura em que o Estado exige do cidadão muito do produto do seu trabalho, é outro elemento cuja deslegitimação destrói a solidez da nossa democracia. Lembremo-nos que Salazar chegou ao poder como “ditador das finanças”.

Sexto e por último, se o Estado se envolve num conflito com os corpos da sociedade, associados à nossa identidade e soberania, acaba sempre por perder, com enormes custos para todos. A Primeira República conduziu uma guerra contra a Igreja e perdeu-a. Convinha, perante uma Igreja hoje muito diferente, e que também compreendeu a liberdade que lhe dá a separação do Estado, não querer laicizar uma sociedade à força de leis, sob pena de se violentar sentimentos que não são só dos crentes, mas da sociedade em geral. E, num país onde as forças armadas são um exemplo de civilismo, contrariamente ao que acontecia nos anos da República, não se afrontam as questões de Estado, como as do seu armamento e eficácia operacional, como se de anedotas jocosas se tratasse ou de pretextos de ocasião.

É verdade que houve de 1910 a 1926, instabilidade, violência política, guerra civil, intolerância, repressão, manipulação eleitoral, actuação anti-operária e anti-sindical, censura, mas também é verdade que muitos republicanos, depois de afastados do poder, mostraram o melhor de si próprios.

Quando, depois de 1926, foram perseguidos, exilados, presos, impedidos de exercer a sua profissão, afastados das forças armadas, desempregados, insultados e agredidos, muitos republicanos, incluindo os chefes partidários, permaneceram fiéis a uma resistência tenaz, tanto mais valorosa quanto durou quatro décadas, em que muitos podiam ter-se acomodado e desistido. Em muitas terras de Portugal, e não só nas cidades, eles fizeram sempre a melhor propaganda que há, a propaganda pelo exemplo.

Talvez por isso, mais do que a Primeira República de 1910 a 1926, comemoramos hoje a sua imagem na resistência nos anos do salazarismo e do marcelismo, quando se via, como eu vi, nas romagens aos túmulos das vítimas do 31 de Janeiro no Porto, alguns velhos a chorarem quando gritavam emocionados “viva a República”. A revolução republicana já pouco dizia à minha geração, mas essa emoção dizia quase tudo. Esse “viva à República” era um puro acto de liberdade em tempos de servidão. E esse grito de liberdade merece todas as comemorações.

Disse.

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© José Pacheco Pereira
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