ABRUPTO

29.10.10


ARCAÍSMOS

Os arcaísmos abundam na nossa vida política e, num momento de grave crise política como aquele que atravessamos, esses arcaísmos diminuem a capacidade de o espaço público ter qualidade para responder a essa crise. O mais interessante é que, mesmo nas gerações de políticos que usam intensamente tecnologias de informação, esses arcaísmos não perderam a força, bem pelo contrário. E, no caso português, não é só a geração que cresceu com o Facebook e com o Twitter, mas também a geração-telemóvel e a geração-blogue. Como acontece com quase tudo o resto, os arcaísmos em política são duplicados pela comunicação social, que replica muito melhor o arcaísmo do que a renovação.

Um desses arcaísmos é a condenação dos políticos por "falar de Portugal no estrangeiro". Ainda recentemente Sócrates foi atacado por ter feito declarações sobre a crise nacional nos EUA, assim como Passos Coelho por uma entrevista que deu ao Frankfurter Allgemeine Zeitung, e mesmo o cosmopolita Marcelo Rebelo de Sousa desdobrou-se em desculpas por estar a falar de Portugal em Maputo. O que é bizarro é que o "estrangeiro" continue a ser uma espécie de anátema antipatriótico como era no salazarismo e que numa altura em que os novos media são, pela sua natureza, globais, ainda se pense que é um mal falar de "fora". Esta atitude muito provinciana é um resquício da nossa periferia, do tempo em que viajar para fora de Portugal era excepcional e tudo o que vinha de fora era visto como tendencialmente estranho e suspeito.

Numa declaração feita a um órgão de comunicação social o que conta é a adequação do meio e da mensagem dos diferentes interlocutores. Se isso pode implicar, nalguns casos, que o lugar onde se emite uma mensagem e o seu meio sejam relevantes, nunca o será por ser português ou estrangeiro. Admito que, quando se fala a um jornal estrangeiro, se pense no que se diz em função do público que vai ler esse jornal, mas isso é muito diferente de condenar alguém por ter falado no estrangeiro para um público português, principalmente quando se está numa missão e o tempo da fala é relevante. Não me choca que Sócrates ameace com a sua demissão a partir dos EUA, onde estava em funções como primeiro-ministro, porque o faz para um público português, num tempo político que é também o português. O valor da sua declaração para um público estrangeiro (e em particular para a audiência que mais nos interessa nesta altura, os "mercados") é igual, quer esta seja feita em Nova Iorque, quer transmitida de Lisboa por um despacho de agência. Mas a persistência deste arcaísmo provinciano mostra como ainda são muito paroquiais os termos da nossa política.

Outro arcaísmo igualmente persistente e que resiste, mesmo quando as lideranças partidárias se pretendem muito modernas e muito desenvoltas com os novos media, é a condenação do "falar fora", ou seja, a emissão de opiniões no espaço público e, por extensão, a interdição do debate aberto para além de normas de estrita disciplina e obediência partidária.

Só a ignorância da vida política fora de Portugal é que leva a pensar-se que nas democracias mais consolidadas alguém aceitaria sequer imaginar a condenação da livre discussão "fora", ou seja, em público, por exemplo entre membros e eleitos dos partidos Democrata e Republicano americanos, ou dos conservadores e trabalhistas ingleses, ou dos sociais-democratas nórdicos, de políticas, orientações, decisões dos seus partidos. É normal que se considere um dever de reserva para os governantes, obrigados a uma relação especial de confiança que une uma equipa executiva, mas congressistas, senadores, deputados, autarcas, eleitos a todos os níveis, discutem livremente se são ou não a favor de uma lei proposta, de uma declaração ou tomada de posição, sem que isso enerve ninguém, como acontece às lideranças em Portugal, nem mobilize os obedientes sempre de serviço para tentar pôr na ordem os recalcitrantes.

Claro que há razões estruturais e conjunturais que explicam a persistência deste arcaísmo na vida política portuguesa. A começar pela a falta de consistência político-ideológica dos partidos que os tornam mais comunidades de acesso ao poder e às benesses do poder do que organizações cívicas com identidade. Em consequência, a diferença é vista muito mais como uma quebra de eficácia no trajecto para o poder do que como manifestação de opinião ou como ponto de vista legítimo. O aparelhismo que cresceu exponencialmente nos partidos portugueses reforça esta tendência, logo acentua a necessidade de uma imagem monolítica para o exterior, em detrimento do debate democrático e aberto ao público, ele próprio uma forma de recrutamento mais eficaz do que o monolitismo, caso a sociedade premiasse o mérito e não a conformidade. Neste caso, os partidos reflectem também a escassa mobilidade social e o peso do consensualismo na vida colectiva.

Em segundo lugar, o sistema político português favorece carreiras de obediência, na medida em que os partidos políticos e as suas direcções fazem as escolhas fundamentais quanto ao acesso à eleição. Não havendo sistema eleitoral uninominal, nem misto, não existindo a possibilidade de cidadãos concorrerem a cargos políticos legislativos fora dos partidos, são os directórios partidários que decidem quem entra ou sai de um lugar como o de deputado. Logo, a manutenção de um cargo como o de deputado, de uma eleição para outra, pouco tem a ver com o mérito, trabalho ou a relação pessoal com o eleitorado, mas com a carreira interpartidária, o lugar de cada um na estrutura partidária e a fidelidade às direcções partidárias.

Isso favorece um clima de obediência e uma gestão de "carreiras" muito concentrada em não desagradar a quem está momentaneamente no poder, assim estiolando qualquer debate. Mas, na verdade, a condenação do debate é igual, quer ele seja feito "dentro", quer "fora", ao mesmo tempo que há uma enorme complacência com ambientes de intriga e conspiração que substituem o debate público por fugas de informação orientadas. A comunicação social actua em conformidade com este ambiente, até porque cada vez mais a mentalidade, formação e mesmo transumância entre lugares é feita numa ecologia comum. Os blogues de jornalistas, aliás, revelam uma continuidade perfeita de mentalidade e métodos entre o meio jornalístico e o meio político.

Se somarmos a esta ecologia que privilegia a conformidade a fragilidade política das lideranças, que se geram e caem exactamente neste meio, temos os ingredientes para a inanidade do debate político intrapartidário. O debate livre, dentro e fora, que é, aliás, o normal em todas as democracias adultas, obrigaria a um upgrade, quer das lideranças, quer dos termos do próprio debate, afastando-o da intriga e aproximando-o das regras, cada vez mais exigentes, do espaço público livre. Ora, isso é particularmente temido pelos aparelhos partidários, que precisam de manter regras de acesso ao poder e à influência "fechadas", oligárquicas e comunitárias, quase clubísticas.

Na verdade, que mal viria ao mundo e em que é que seria anormal, não fosse o nosso arcaísmo e a nossa pequenez, se, por exemplo, a posição a tomar face ao Orçamento do Estado, que é mais do que isso um verdadeiro "debate da nação", fosse livremente discutida em público por todos, no PS e no PSD? Nenhum, nem se perderia aí um voto sequer. Os votos perdem-se é com outras asneiras, que talvez pudessem ser evitadas, se houvesse mais discussão e menos medo do debate. Fora, para todos os portugueses e, dentro como fora, com liberdade.

(Versão do Público de 23 de Outubro de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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