ABRUPTO

15.3.09


UMA COLIGAÇÃO DO PS-1 (SÓCRATES) COM UM PS-2 (ALEGRE)



No debate da última Quadratura do Círculo, António Costa sugeriu que o "problema Alegre" para a direcção do PS (leia-se para Sócrates) se poderia resolver através de uma espécie de "coligação". Admito que a palavra "coligação" tenha sido dita como um lapsus linguae, mais como aquilo que António Costa pensa que é do que aquilo que realmente se anunciará como sendo. No fundo, presumo que queria dizer um "acordo político", entre Alegre e Sócrates, com a constituição de um minigrupo parlamentar com apoiantes indicados por Alegre e uma espécie de contrato político pelo qual esses apoiantes (o minigrupo) votariam com o outro grupo parlamentar do PS (o maxigrupo) os documentos fundamentais, como seria o caso do Orçamento do Estado, e teriam liberdade de voto noutras matérias. A não ser que se trate de um exercício cínico de Realpolitik, destinado a resolver o problema imediato do PS através de uma táctica dilatória destinada a manietar Alegre e impedi-lo de, a tempo, se preparar para uma eventual ida às urnas, uma "coligação" seria um desastre para o PS e para um eventual governo do PS.

Uma solução deste tipo teria para um Sócrates imediatista e pragmático a vantagem de evitar o risco de uma cisão no PS que teria a saída de Alegre, seguida eventualmente pela criação de um movimento, grupo, ou seja lá o que for, que ou apoie outro partido nas eleições (o Bloco de Esquerda, por exemplo), ou, pior ainda, concorra às eleições com um novo partido. Mas, uma solução de "coligação", se resolveria as tensões do presente, seria mais um problema para o futuro. Seria inédita, bizarra e perversa na democracia portuguesa, não traria transparência ao eleitor e não garantiria qualquer estabilidade futura. Alegre e os seus apoiantes não são o grupo de senhoras católicas que vota com a Igreja na bancada do PS. É outra coisa. Um governo que viesse, em hipótese académica, a ser constituído com uma base parlamentar deste tipo, dois partidos em um, seria ainda mais instável do que um governo de coligação.

Vamos por partes. Qualquer acordo na base de orientações programáticas entre aquilo que o PS de Sócrates e o PS de Alegre defendem seria incoerente e traria muitos conflitos. A "esquerdização" estatista que se vive nos dias de hoje na retórica do PS como reacção à crise financeira e económica pode unir na aparência Sócrates e Alegre, mas não resistiria à prova da governação. Hoje um governo PS não pensará em privatizar a TAP ou a EDP, mas quererá fazê-lo no futuro. Hoje, um governo PS, em vésperas de eleições, deitará dinheiro por cima de tudo o que mexe e o que não mexe. Depois das eleições, um eventual governo PS terá que dar um aperto enorme no controlo orçamental, com perda de regalias sociais, aumento dos impostos, despedimentos na função pública. Hoje Sócrates pretende ter as vestes de Robin Hood, amanhã quererá ser "estadista" e namorar à direita.

Como actuarão, nesse contexto de amanhã, os dois PS "coligados"? Cada um para o seu lado. Ora, na hipótese de o PS ganhar as eleições, não será previsível que, mesmo com o PS de Alegre no seu interior, o faça com maioria absoluta; ou na ainda mais académica hipótese de ter maioria absoluta, os votos do grupo parlamentar "alegrista" serão os decisivos em qualquer votação. Se Sócrates fizer uma "coligação", fica refém de Alegre, no mais que provável cenário de uma redução do número de parlamentares, em que cada um de Alegre será decisivo. Por isso, qualquer futura governação do PS será profundamente instável, mesmo com maioria absoluta.

Na prática, seria também um enfraquecimento quase institucionalizado da autoridade de José Sócrates, que defraudaria as votações unanimistas do último congresso, fazendo com que vá às urnas numa posição em que a sua autoridade está muito fragilizada e em que não pode, face ao eleitorado, apresentar-se como estando à frente de um partido, mas apenas de uma parte.

E, por último, a questão da clareza do voto. Em quem vota quem vota no PS? Em Sócrates ou em Alegre? Presumo que basta esta dúvida para perceber que mesmo em termos eleitorais é uma péssima solução para o PS. Nem os eleitores tradicionais do PS se sentirão à vontade e desconfiarão, nem muito menos os presumíveis eleitores de Alegre entenderão esta "coligação" e, ou se absterão, ou votarão BE ou PCP.

O "problema Alegre" no PS é apenas uma das faces da crise mais geral que os dois partidos centrais do sistema político português atravessam e que vai mais fundo do que os epifenómenos que a revelam. Quer o PS quer o PSD têm graves problemas de unidade interior no seu seio, embora eles se manifestem de formas diferentes, tenham causas diferentes e consequências distintas.

O PSD pode desagregar-se em grupos de poeira cada vez mais finos e frágeis e ficar apenas um grupo maior com pouco mais do que a marca, mas o PS pode cindir-se. Há uma diferença. No PSD há uma captura dos aparelhos locais pelos interesses e poderes locais, em particular autárquicos, com um processo de grande fragilização da componente nacional, logo de qualquer direcção política nacional. Há também hoje uma constituição de um partido paralelo à volta de Passos Coelho, com apoios exteriores, mas o seu objectivo é a captura da direcção nacional numa lógica de crise eleitoral, não é a de actuar face ao eleitorado. Passos Coelho quer receber o partido de bandeja depois de uma derrota eleitoral, não quer testar-se eleitoralmente em nenhuma circunstância, a não ser como deputado numa lista de Ferreira Leite, tendo as vantagens do lugar e sem se responsabilizar nos resultados.

Alegre, pelo contrário, não quer ser dirigente do PS, quer usar a influência junto do eleitorado de esquerda (que associa aos seus votos presidenciais) para moldar políticas e não exclui, daí a crise actual, cindir o PS e ir a votos. A estratégica de Alegre passa pelo voto, a de Passos Coelho pela crise interna. No caso do PS, a fractura é mais ideológica do que orgânica. Na organização interior do PS, Manuel Alegre quase nada conta. Não dispõe de estruturas, secções ou federações, mas de movimentos de simpatia entre militantes e eleitores (mais provavelmente entre os eleitores do que entre os militantes mais ligados ao aparelho). Os seus simpatizantes estendem-se não só ao eleitorado do PS, mas também ao eleitorado mais vasto da esquerda entre o BE e o PCP e os vários movimentos cívicos como o que anima Helena Roseta. É por isso que, se Alegre desse um passo para organizar os seus apoiantes num movimento que fosse às urnas, quer o BE, quer o PCP o atacariam de imediato, como aliás já o fizeram, quando pensaram que esse risco estava mais próximo.

O PS de Sócrates pode tentar manter Alegre no seu interior com uma absurda "coligação", mas a clarificação conflitual que os grandes partidos querem evitar fica apenas adiada. Por outro lado, se Alegre for às urnas, verificar-se-á uma reorganização geral da esquerda portuguesa, envolvendo outras personagens que estão num limbo actual, como Carvalho da Silva, e isso terá consequências em todo o espectro político português. E não será só no PS, será também no PSD.

(Versão do Público de 14 de Março de 2009.)

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© José Pacheco Pereira
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