ABRUPTO

30.3.09


A SEIS ANOS DE FALIR, LÁ VAMOS CANTANDO E RINDO



Eu suspeito que os portuenses entendem melhor Lisboa do que os lisboetas o Porto. Mas devo estar errado. Eu, pelo menos, não entendo, entendo pouco. Lisboa parece-me demasiado distraída, demasiado normal, a pouco mais de cinco ou seis anos de o país entrar em bancarrota, se tudo continuar como está. Os economistas explicam - saber de economista, ou seja, matéria de muita prudência - que, por volta de 2014/2015, deixamos de ter dinheiro para pagar as nossas dívidas, e ninguém parece especialmente preocupado.
Só para que não se diga que tudo se explica pela "crise" de fora, como quer a propaganda do governo, cito o que escrevi debaixo deste mesmo Titanic e desta mesma evocação do hino da Mocidade, em Maio (despedimentos) e Julho de 2006:
(...) Lá por Outubro, com as primeiras chuvas, com os meninos a ir para a escola, os engarrafamentos, a insuportável banalidade do dia a dia, a bolsa a apertar, as dívidas para pagar, como acontece sempre estas euforias vão azedar-se em múltiplas irritações. E como é que podia deixar de ser assim? O que é que construímos para ser diferente? Onde é que trabalhámos para ter mais? Onde é que poupámos para os dias maus? O que é que aprendemos para nos melhorarmos? Para onde foi o tempo? A culpa será certamente dos "políticos", como é costume.

Volto à minha velha imagem: parece o Titanic, com a orquestra a tocar e a maioria dos viajantes convencida de que é mais um concerto, mais um jogo, mais um Rock in Rio, tudo está bem, curte-se esta cena boa, amanhã se verá. Mais uma cerveja, mais um cachecol, mais uma bandeira, mais um "às armas" que "nós até os comemos!". E a água gelada a subir no porão, atingindo primeiro os da "terceira classe", mas subindo sempre. Sempre.
Todos os dias parecem normais, no centro da cidade que só é branca vista de longe. O sol cumpre o seu dever português em vésperas do Avril au Portugal. Os dias estão já mais quentes do que tépidos. O trânsito parece ter crescido. Violando mesmo as regras que qualquer taxista explica sobre o "princípio" e o "fim do mês" enquanto explicação da relação entre o número de carros e o dinheiro no bolso. Pensando bem, por este indicador, deve haver muito dinheiro nos bolsos, só que não aparece nas estatísticas. As obras por todo o lado entopem a cidade, embora não se veja muita gente trabalhar nelas. Há tapumes, ruas meio cortadas, desvios. Mas as pessoas que passam, os carros que passam, tudo parece o mesmo. Devia haver algum traço invisível que mostrasse a crise, mas não aparece em lado nenhum. Ou então, o mais provável, eu não o vejo.

De onde vem esta agitação? As fábricas estão do lado de lá, ou na corda do Tejo. Aqui só há fábricas de papel, escritórios, repartições, Lisboa é uma cidade terciária, há muito funcionário público, e esses ainda escapam à crise. Não há fábricas, por isso não há desemprego visível. Não é Mangualde, ou o Vale do Ave. Não é o Porto, ou Braga. Não é Setúbal. Tem crise, mas vê-se menos. Escrevo, enquanto atravesso a Baixa, à procura, como David Attenborough, do animal da crise, um ilusivo animal na fauna urbana de Lisboa. Mas se a selva dele não é esta, deve estar mais longe. Em Telheiras, em Alcântara, em Xabregas, nos Olivais? Pode ser, mas deve descer à Baixa de vez em quando.

Nem sei bem se se pode falar de uma Baixa de Lisboa, o caminho que faço entre os Restauradores e o Chiado ou vice-versa. Não tem verdadeiras ruas sem carros, para peões, mas tem uma coisa mista que parece ter sido inventada para prejudicar a todos. Não serve nem os carros, nem os peões. Os parques de estacionamento não devem cumprir qualquer regra, porque os malabarismos que são necessários para entrar em alguns significam que, em caso de necessidade, quem entra não sai. Em particular, para os lados do Chiado e do Largo da Misericórdia, há parques que parecem uma demonstração concreta de que não há lei nem ordem na cidade há muito tempo. Como em muitos sítios do país, como é que se pode entender que haja locais destes a funcionar, violando todas as regras, sem que não se pense em grossa incompetência ou em corrupção? Bom, mas estamos na cidade, há aqui mais dinheiro, logo mais ganância, mais corrupção, marcada a traços de inúmeras tintas nas curvas apertadas dos parques.

Há agitação, agora que a Primavera soltou os seus cães de guerra. Os restaurantes parecem todos cheios ao almoço, a crise deve ser mais para a noite. Por razões que me fazem descrer da qualidade do nosso turismo, as personagens que falam línguas e estão nas esplanadas da Baixa, nem brasseries, nem cervejarias, nem cafés, mas uma espécie de restaurantes de quinta categoria, não se importam de coabitar com o lixo e com o fumo dos carros e autocarros que passam a um metro de distância. Tudo muito mau, mesmo muito mau, com as excepções para confirmar a regra. Estamos no Rossio, e eu suspeito de que mesmo no Martim Moniz deve ser melhor, só que sem turistas.

Claro que as razões porque "desço" à Baixa justificam a volta. O que eu procuro, há. Atrasadas, mas ainda chegando, vêm as revistas estrangeiras distribuídas nos quiosques. Há a Foreign Affairs, a Vanity Fair, a Esquire, a Atlantic, o Spectator, o PC Magazine, a Art in America. Mas será impressão minha ou a maioria das revistas de arte, arquitectura, moda, barcos e aviões, continuam lá no mesmo sítio, com os mesmos exemplares, à espera da devolução? Parecem ficar mais revistas na secção dos computadores, uma secção mais popular do que body building, há mais sobras nas revistas de alta fidelidade, há mais gente a ler sem comprar. Talvez seja a crise diante da bancada das Evasões, embora duvide que tenha chegado à Nova Gente. Pelo menos, o dr. Mário Soares deve continuar a comprar o Nouvel Observateur, pelo que ao menos um exemplar em Portugal deve vender-se. Mas ainda há quem compre o L'Express? Duvido. Ou o Le Point? Meia dúzia de velhos altermondialistas e os deputados "alegristas" devem ler o Le Monde Diplomatique. Mas essa é outra crise.

Livros? O alimento do meu monstro interior? Sim, continua a haver. A FNAC cumpre o seu dever de mostrar quilómetros de nulidades, mas a culpa é dos milhares de títulos nulos que se publicam. Nem paro nesta secção do papel pintado, os romances lusos e estrangeiros traduzidos, com capas cada vez mais iguais e conteúdos que não conto nunca ler. Pelo meio, a FNAC, tem umas idiossincrasias esquisitas. Muito Zizek, que está na moda entre os leitores do Le Monde Diplomatique, e uma tendência bizarra para fazer escaparates dedicados a uma personagem muito secundária da história do século XX, Che Guevara.

No sítio dos computadores o declínio dos desktops (os meus favoritos) atira-os para um canto, meia dúzia de modelos, sem renovação e inovação. Cada vez menos jogos decentes para computador em detrimento das consolas, efeito da pirataria. E cada vez menos software, resultado do mesmo efeito. O que há de menos nos computadores cresce nos vídeos de filmes, e, em particular, de séries televisivas.

Eu sei que os meus interesses são muito especializados e não ouso falar de lojas de tecidos, sapatarias, ourivesarias, cerâmica, ou mesmo a ocasional florista. Mas o café que George Clooney propagandeia, que não é para os pobres e que só se encontra em lojas exclusivas, está sempre cheio e tem que se tirar senhas como na Loja do Cidadão. Já o resto do pequeno comércio deve arrastar-se com todas as dificuldades, por detrás daquelas vitrinas intemporais. Só que a maioria das lojas da Baixa já parecem estar fora do mundo há muito tempo. Se há crise ela já chegou há muito tempo, com as grandes superfícies comerciais. Aquilo já é póstumo há muito tempo.

Na Baixa há mendigos sofisticados, punks nacionais, e literatos loucos que vendem poemas à peça ou tocam pandeiretas. Os mendigos habituais parecem os mendigos habituais, uma mistura dos velhos pedintes que sempre tivemos, à porta da igreja, num canto que ocupam há muitos anos. Depois há os romenos, ciganos romenos, profissionais da mendicidade que povoam todas as cidades europeias. Mas mesmo esses devem ser menos, cortesia do SEF. Não, não há mais mendicidade, nem, pensando bem, seria ali que ela se revelaria. Talvez para os lados do Intendente, ou pelos lados de Santa Apolónia, onde tudo continua na mesma.

É provável que o último sítio onde chegará a crise seja a Baixa de Lisboa, partindo do princípio de que aquilo que chega à Quinta da Marinha ou aos novos condomínios de luxo dificilmente se pode chamar crise. Mais ano menos ano, a continuar assim, um dia acordamos ainda mais pobres do que já somos, sem o saber. Nesse dia ficamos a saber como somos pobres e como, pelo facto de o sabermos, ainda mais pobres ficamos. Nesse dia chegará a crise à Baixa de Lisboa, e, na pior das hipóteses, sob forma ateniense. Não da Atenas de Péricles, mas da de 2008-9, a que arde.

(Versão do Público de 28 de Março de 2009.)

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Fez, na versão mais completa que colocou hoje no Abrupto do seu último artigo do jornal Público, uma referência à orquestra do Titanic, que continuava a tocar enquanto o navio se afundava. É bastante corrente usar-se esta imagem como um paradigma de comportamento fútil e superficial no meio de uma catástrofe. Mas é um erro, pois é uma caricatura extremamente injusta de um dos maiores exemplos de coragem e de altruísmo de que tenho conhecimento.

Começo por corrigir um erro: não havia qualquer orquestra a bordo do Titanic. Havia, isso sim, dois agrupamentos musicais: o quinteto de Wallace Hartley e um trio de cordas. Nunca tocaram juntos a não ser na noite do desastre. E o que os levou a tocarem nessa ocasião, por sua própria iniciativa, foi o desejo de tentarem acalmar os passageiros enquanto estes tentavam arranjar lugar nos salva-vidas. Ao fazê-lo, perderam a possibilidade de eles próprios se salvarem. Com efeito, nenhum sobreviveu ao desastre. Um jornalista da época, ao descrever o naufrágio, escreveu que «o papel desempenhado pela orquestra a bordo do Titanic nos seus últimos e tenebrosos momentos ficará registado entre os maiores actos de heroísmo no mar».

O corpo de Wallace Hartley viria a ser encontrado mais tarde. Mais de trinta mil pessoas prestaram-lhe as últimas homenagens pelo seu acto heróico e, mais tarde, este monumento foi erigido em memória do que fizeram aqueles músicos.

(José Carlos Santos)

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