ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
|
8.3.09
Nas secções de DVD das grandes livrarias da FNAC, os únicos supermercados de livros que merecem o nome, uma secção cresce exponencialmente: as séries televisivas. Os filmes e os documentários fenecem comparados com os metros de Perdidos, Friends, Erva, Simpsons, American Dad, Family Guy, Californication, CSI, O Sexo e a Cidade, Boston Legal, Dr. House, etc. Nos filmes, como nos livros, a oferta é irregular. Depende muito do mercado dos novos filmes dependentes das zonas, sendo que o europeu é muito menos importante do que o americano em número e qualidade dos títulos, e em variedade. Filmes clássicos há alguns, mas a oferta é desigual. Há alguns meses queria o Doutor Jivago, de David Lean, e não havia em nenhum lado. Agora parece que já há. E quando quero alguma coisa menos normalizada, por exemplo alguns filmes clássicos de Satyajit Ray, também não há. No caso dos filmes portugueses é a mesma coisa. Aí o politicamente correcto também pesa, para que não haja, por exemplo, nenhuma edição da Revolução de Maio, de António Lopes Ribeiro. No fundo, é como nos livros, muitos e muitos metros de estante, mas experimentem procurar um Camilo, mesmo dos títulos mais conhecidos, ou um Graham Greene, e nada. As livrarias portuguesas não têm um corpus permanente de clássicos, como acontece nas grandes livrarias francesas e inglesas. Em contraste, as séries televisivas chegaram em toda a força e ainda bem. É uma novidade a que nos habituamos depressa sem perceber que é uma novidade - não existia há 3-4 anos, nem existia no mercado do vídeo em cassete com esta dimensão. Em parte, esta novidade está associada ao crescimento da televisão por cabo, que passou a ser o principal veículo para este tipo de séries, com o recuo dos filmes e séries televisivas, sem ser em português, do horário nobre das televisões. Onde nas programações há alguns anos se ouvia inglês com legendas às 22h00, hoje só depois das 24h00 e mesmo assim com muito menos frequência. Nos canais de cabo é ao contrário. A esmagadora maioria dos títulos que se vêem nas prateleiras da FNAC passam no cabo, ou em canais abertos ou pagos. O que é interessante em muitas dessas séries é a sua grande qualidade. O enorme profissionalismo da indústria americana revela-se nas equipas reunidas que são o melhor que há no mundo e vê-se. Vê-se logo. Há muito lixo, como é óbvio, mas o que não é lixo é de um modo geral muito bom, com excelentes guiões, muito bons actores e realizações impecáveis, ou seja, televisão superlativa. Esse incremento de qualidade contrasta, mesmo no cinema americano, com um cinema cada vez mais enjoativo, dominado pela intriga psicológica e por uma implosão excessiva nos temas politicamente correctos. As séries, em parte porque a sua mecânica de seriação cria um efeito aditivo, podem desenvolver personagens e situações com outra extensão narrativa. Séries, como a pioneira Twin Peaks, transportam melhor o mundo bizarro da imaginação de David Lynch do que o filme com o mesmo nome. O tempo conta, a sequência e a repetição que tiram staccato aos filmes funcionam nas séries para nos dar "ambientes" mais complexos, com mais envolvência e atracção para quem os vê. Outra vantagem das séries é que, produzidas nos EUA para o cabo, não estão sujeitas aos códigos de censura do cinema, tendo muito mais liberdade para situações e vocabulário, que levariam nos filmes a classificações que afectam o mercado. Usei acima o adjectivo excepcional para os guiões, para os argumentos, porque em muitas séries a narrativa e o diálogo atingem muitas vezes uma qualidade estética pouco vulgar em produtos de consumo de massas. As traduções portuguesas, literalmente abaixo de cão de tão más que são, encarregam-se de estragar essa qualidade com muita diligência, mas quem acompanhar o inglês ganha imenso. De todas as séries, as da produtora HBO estão muito acima da média. Isso percebeu-se logo com uma série igualmente precursora da nova vaga de filmes televisivos, os Sopranos. A HBO, produtora do Sexo e a Cidade, Amor Imenso (Big Love), Sete Palmos de Terra (Six Feet Under), Roma, deu origem a duas séries menos conhecidas: A Escuta (The Wire) e Deadwood, de excepcional qualidade. Deadwood, que, que eu saiba, não existe em português, é, na fragilidade destas afirmações, a melhor série que vi nos últimos tempos (tenho uma velha e grande estima pela Twilight Zone inicial...). Deadwood mostra, como acontece sempre nas melhores séries, as virtualidades do guião de David Milch, escrito para simular como falariam os marginais que iam para o "acampamento" de Deadwood (hoje cidade, no Dakota do Sul, porque a história é parcialmente verdadeira, ver imagem de Deadwood em 1876) para ganhar dinheiro ou fugir. Com os seus 2980 fucks, verdadeira recordista naquilo que os americanos chamam profanity, os diálogos são uma parte tão corpórea da acção que, sem eles, Deadwood não seria Deadwood. Aos diálogos soma-se um conjunto de grandes actores, a começar por Ian McShane, que parecem nascidos no corpo das personagens.Se nós tivéssemos ensino a sério, Deadwood, com os seus múltiplos fucks, seria dado nas aulas de História para explicar o nascimento das civilizações a partir do caos, porque essa é a história que a série conta. Claro que, para isso, precisávamos de professores que a entendessem e, mais difícil ainda, de alunos que deixassem de lado os fucks e as cenas de bordel, para compreender como uma cidade violenta, construída por fugitivos e bandidos em terras que não eram legalmente parte dos EUA, onde não havia lei nem ordem, precisa progressivamente de lei e de ordem. Os motivos são "civilizacionais", garantir a propriedade, adquirida ilegalmente, aquilo a que o malogrado teórico soviético Preobajensky chamava "acumulação socialista primitiva" e Proudhon, o roubo. Na semana em que foi morto Nino Vieira, e pela forma como os eventos se desenrolaram em termos de assassinato versus assassinato, vingança pura, cruel e violenta numa terra de ninguém que parece que se intitula um país, com a ridícula simulação de legalidade de um "inquérito", foi de Roma (*) e de Deadwood que me lembrei. Para dar a História ao contrário: da civilização à barbárie. Quem queira perceber estas coisas sempre pode ir à prateleira da FNAC procurar as séries devidas. (Versão do Público de 7 de Março de 2009.) * (*) Agradeço a Bruno Alves a correcção que fez ao artigo. (...) uma pequena correcção ao seu artigo de hoje no Público: David Milch, o criador de /Deadwood/, não tem nada a ver com /Rome. /Não só a série não é da sua autoria, como ele nem sequer escreveu qualquer episódio. Aliás, antes de apresentar /Deadwood/ à HBO, a ideia do homem era fazer um policial passado em Roma no tempo de Nero, proposta que foi logo recusada à partida precisamente porque /Rome/ já estava em produção (coisa que Milch desconhecia), e não queriam fazer uma série "igual". Bem sei que fazer este reparo é uma coisa muito /nerdy/, mas enfim, é o que dá passar a vida a ver estas séries... (url)
© José Pacheco Pereira
|