ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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2.3.09
A BLOGUIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO SOCIAL Caricaturas de Grandville. As relações entre os blogues e a comunicação social mostram aspectos novos do sistema comunicacional em geral, de que eles são uma parte sui generis. Essas relações têm vindo a evoluir de forma interessante e que convém observar. Numa primeira fase, a reacção da comunicação social face aos blogues era de hostilidade e desconfiança. Os blogues traziam novos temas que os jornais, rádios e televisões não tratavam ou ignoravam e criticavam o seu conteúdo, abrindo um debate sobre a qualidade do jornalismo português que uma mentalidade corporativa sempre impedira que se fizesse nos próprios órgãos de comunicação social. Os jornalistas, salvo honrosas excepções, abominavam um meio que consideravam "não editado", não conforme com as regras do processo jornalístico, com as boas práticas profissionais e com a deontologia. Na verdade, esta reacção de recusa continha muita hipocrisia, visto que o próprio trabalho jornalístico também era, no geral, pouco conforme com as normas profissionais e regras deontológicas, pouco ou nada "editado" e de muito má qualidade. Os blogues foram encarados desde início como se de competição se tratasse e os jornalistas tentavam manter um sistema de closed shop. Depois, as coisas foram mudando e iniciou-se um período ambíguo, em que os jornalistas iam buscar notícias e sugestões de notícias aos blogues, sem citar a sua fonte, deixando passar uns dias para pegar num assunto, para não haver uma correlação directa entre uma nota de blogue e uma notícia num jornal. De seguida, pouco a pouco, os jornais começaram a citar os blogues e a permitir que informações que aí se encontravam acabassem por ser notícias nos jornais, citando a sua origem e desenvolvendo o seu conteúdo. Foi o caso das contradições do currículo e do curso de José Sócrates, que de há muito tempo gerava controvérsia nos blogues, com informação e documentação sólida, e que só bastante mais tarde chegou aos jornais, ou melhor, ao Público. Entrou-se depois numa nova fase em que a agenda dos blogues se tornou cada vez mais dependente da comunicação social e vice-versa, com a conjugação de várias mudanças na blogosfera portuguesa, que têm a ver com um crescente movimento de pessoas entre a comunicação social tradicional e os blogues, num duplo sentido, e com uma maior politização grupal da blogosfera. Este processo é de facto interligado, com o crescente recrutamento de autores de blogues para o comentário em jornais, rádios e televisões, a entrada em massa de jornalistas para os blogues e a criação de blogues de jornalistas e a transformação da blogosfera numa continuidade da acção política que lhe era exterior, embora com características diferentes do mainstream político. Os blogues eram regra geral mais radicais, à esquerda e à direita, mais próximos dos sectores ideológicos mais agressivos do PP (ligados a Paulo Portas) e ao Bloco de Esquerda. Em termos de linguagem, temas, escrita, os blogues tornavam-se muito confrontacionais, usando uma linguagem violenta, apoiando causas nas margens do sistema partidário, mas de um modo geral dentro dele. A migração de jornalistas para os blogues acabou por ser mais importante do que a migração dos blogues para a comunicação social "exterior". Muito poucas vozes no comentário se afirmaram vindas de dentro para fora, enquanto muitos jornalistas, em particular aqueles que fazem uma espécie de jornalismo "interpretativo", que pouco mais é do que política com outro nome, encontraram nos blogues a possibilidade de terem plataformas próprias competindo no terreno politizado da blogosfera. O resultado foi um empobrecimento e uma perda de autonomia temática da blogosfera, dominada pela grupusculização e pelos grupos de amigos que se fazem e desfazem, quase sempre mais unidos pelos seus inimigos do que por concordâncias comuns. Ponderadas as diferenças de tempo e de modo, a blogosfera tornou-se muito semelhante ao ambiente grupuscular da política da extrema-esquerda dos anos setenta. Para a comunicação social também houve um empobrecimento, na medida em que a sua agenda se tornou cada vez mais dependente dos blogues, que alimentam e reforçam a tendência para um pack journalism, para um "jornalismo de rebanho" que favorece consensos e situacionismos. Lendo os blogues, pode-se hoje antecipar como os jornais vão tratar este ou aquele tema, porque se tornou evidente a dependência da "notícia" da opinião dos jornalistas. Envolvido nas guerras de blogues, em que o narcisismo impera num meio muito claustrofóbico, moldado cada vez mais por um radicalismo posicional e grupal, o jornalismo ganha os vícios dos blogues. O resultado está à vista na bloguização da comunicação social, perdoe-se o neologismo. Temas marginais e das franjas, "fracturantes" no seu pleno sentido, são centrais nos blogues e passaram daí para fora. O casamento dos homossexuais, uma causa minoritária em todos os sentidos, a começar pelo da sua relevância social, passou para tema corrente, quando na realidade não o é para quase ninguém fora dos blogues e da extrema-esquerda. Não é sequer possível compará-lo com a questão do aborto, que parece antecedê-lo, essa sim, com significado social. O mesmo se pode passar com a eutanásia, sem minimizar os enormes dilemas éticos que comporta, mas igualmente marginal. Blogues e comunicação social dão relevância muito semelhante a temas deste tipo, em detrimento de questões sociais muito mais sérias e que quase não existem nos blogues, como seja os despedimentos, as condições laborais, a condição operária, o mundo rural, etc. Por razões que têm a ver com a origem social dos seus autores, mas também da mecânica comunicacional e política do meio, há temas típicos dos blogues, e cada vez menos diferenças entre esses temas e os da comunicação social em geral. O resultado é que a perda de proporções, de relevância, de valor social, típica dos discursos radicais e politizados, impregna a comunicação social quase sem se dar por isso. Vários exemplos mostram como a perda de proporção e relevância, típica da agenda dos blogues (em si nada de mal) se transferiu para a comunicação social (em si mau, porque os critérios de fora não podem ser só os de dentro da blogosfera). O modo como assumiu relevância a proibição de umas imagens num computador Magalhães num Carnaval, ou o confisco de uns livros com a "origem do mundo" de Courbet na capa, a que jornais dedicaram páginas inteiras, Público incluído, mostram esse efeito de bloguização. Na verdade, ambas as atitudes eram condenáveis e mereciam notícia, mas é completamente desproporcionada a relevância que lhes foi dada. Mais: é falso que tivessem o significado social que se lhes atribui, de mostrar um ambiente censório na sociedade portuguesa. Há de facto um ambiente censório, mas não é aqui, não é nos actos isolados dum magistrado e duns polícias, que revelaram não ser a norma. Em ambos os casos, o escândalo motivou um imediato recuo e nenhuma força social e política se colocou do lado da censura. São epifenómenos minoritários, não revelam qualquer doença social, porque de um modo geral toda a gente os condenou. Naturalmente, sem dúvidas, sem hesitações. O que ambos os episódios revelaram de mais interessante esteve a montante e a jusante e é do domínio do debate público e não na notícia picante. Foi, por exemplo, ver como durante dias Courbet era designado por locutores e comentadores na rádio e televisão por Cubete, Curbete, Cuber, Curber, ou como o tema era comentado por gente escandalizada com a "censura" mas que se percebia à distância que não fazia a mínima ideia de quem era o autor do quadro. By the way, convém também não esquecer que a obra era mesmo na sua origem pornográfica, encomendada para fazer parte de um "gabinete erótico", e que não é líquido que o seu estatuto de obra de arte não impeça a sua exposição com reserva. Mesmo os jornais que mais espaço dedicaram ao acto "estúpido" e "ignorante" da polícia, não ousaram colocá-la na capa, como certamente não o fariam com uma fotografia de Mapplethorpe, e isso não era censura nenhuma. Passar por estas coisas com todo o simplismo de as ver apenas como uma luta entre a liberdade sem limites e a censura estúpida, é típico dos blogues, mas não devia ser típico dos jornais. Estes são editados, não são? Disse atrás que as censuras mais preocupantes não são estas, são outras, mais invisíveis e mais perigosas porque consentidas. Não as vemos porque se escondem atrás da irrelevância espectacular, das distracções, uma especialidade dos blogues. É também por isso que a bloguização da comunicação social é má para o debate público. (Versão do Público de 28 de Fevereiro de 2009.) * Assinalo-lho mais uma variação do nome de Courbet: apareceu como «Courbert» no Público. (url)
© José Pacheco Pereira
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