ABRUPTO

14.9.08


A TEORIA DAS DUAS CABALAS



Correm hoje na sociedade portuguesa, a propósito do processo Casa Pia, duas teorias da cabala, mutuamente contraditórias, mas desenvolvendo-se diante dos nossos olhos todos os dias. Sempre que há um elemento novo que se acrescenta ao processo, entendido no seu sentido lato, muito para além do processo jurídico propriamente dito, indo da busca ao 24 Horas à indemnização de Paulo Pedroso, voltam de novo as cabalas com a mesma força de sempre.

Existem duas teorias da cabala, uma rosa, oriunda do PS, e outra azul, com origem mais difusa. Ambas assentam, grosso modo, nos mesmos factos, ou presunções de factos, ambas coincidem em muitos aspectos mas, no essencial, são distintas na identificação de actores e responsáveis. Se tivéssemos que dividir o país entre a cabala rosa e a cabala azul, quase todos os portugueses aí encontrariam a sua camisola, embora os adeptos se distribuam de modo muito desigual. Os adeptos da cabala rosa estão confinados a uma parte de dirigentes do PS, e do "povo" PS, enquanto os adeptos da cabala azul são muito mais numerosos. A disparidade dos partidários de uma ou de outra não releva do mérito da "história secreta" de cada uma das teorias, nem as razões da disparidade são, em si mesmas, positivas. A cabala azul é claramente impulsionada pelos ventos do populismo antipolíticos, da suspeita popular de que "eles" são capazes das mais hediondas coisas e do prazer de os ver "apanhados". Na verdade, é a cabala azul que é mais poderosa, até porque é difusa e "popular".



Vejamos qual é a "história secreta" de cada uma das cabalas. A cabala rosa foi exposta em sugestões, insinuações e, nalguns casos, em directas afirmações por várias pessoas, a começar por Ferro Rodrigues e a terminar por Ana Gomes. No blogue Causa Nossa, Ana Gomes, no seu estilo desbocado, fez uma recente exposição da cabala que tem a vantagem de pôr preto no branco algumas coisas só sussurradas. A história é mais ou menos esta: foram identificados casos de pedofilia quer na Casa Pia, quer no Parque Eduardo VII, que serviram a determinadas forças (no governo PSD/CDS, na magistratura, na Polícia Judiciária, em meios ligados às informações) para realizarem dois objectivos. Um, instrumental a curto prazo, foi desviar as atenções dos casos de pedofilia do Parque Eduardo VII, (envolvendo, diz Ana Gomes citando o Le Point, "dois ministros de Durão Barroso que frequentavam o Parque"); outro, com mais fôlego político, "decapitar" a direcção do PS de Ferro Rodrigues (Ana Gomes: "Uma urdidura montada para também, de caminho, decapitar politicamente o PS de uma direcção que inquietava o 'centrão' traficante de favores e negociatas à custa do Estado."). Ferro Rodrigues, Paulo Pedroso eram visados, e de passagem outros dirigentes do PS como Jaime Gama, assim como personalidades ligadas ao PS como Carlos Cruz ("figura de notoriedade insuperável e conhecida colaboração com governantes do PS", idem). Para isso, "alguém" "instrumentalizou" algumas das vítimas de abusos sexuais da Casa Pia para acusar e identificar dirigentes e simpatizantes do PS ("tem de se fazer tudo para desenterrar a verdade e para identificar, expor e julgar os canalhas que instrumentalizaram jovens da Casa Pia, vítimas de abusos pedófilos, para acusarem falsamente Paulo Pedroso, Ferro Rodrigues e Jaime Gama", de novo Ana Gomes). Segundo esta versão da cabala, o objectivo imediato foi conseguido, desligando-se o processo do Parque Eduardo VII que desapareceu no limbo da justiça, enquanto o da Casa Pia crescia exponencialmente. Um procurador, obcecado por apanhar a "classe política" toda, fez um livrinho de reconhecimento onde estavam todos os políticos, mais o cardeal-patriarca, menos os magistrados, e começou a fazer escutas telefónicas a eito e a querer analisar chamadas telefónicas de muitos milhares de pessoas. O rasto dessa devassa ficou pelo caminho em envelopes, como o célebre "envelope 14", e em fugas sobre fugas de informação. A uma dada altura, Paulo Pedroso, o "número dois" do PS na altura, é preso com espavento na Assembleia da República, numa perseguição assente num "erro judicial" tão flagrante que lhe viria dar razão numa acção de indemnização contra o Estado. Os abusos de escutas telefónicas e da utilização da prisão preventiva foram de tal monta que o PS teve que corrigir muita da legislação (parte da qual de sua responsabilidade) que permitiu a prepotência justicialista dos magistrados e polícias envolvidos na "urdidura" contra o PS. Para esta cabala ter sentido ela implica que "alguém" treinou os rapazes da Casa Pia, lhes apontou os alvos e conduziu uma série de operações que tinham que envolver desde o ministro da Justiça (então do PP), ao PGR ("o patético PGR da época recusou investigar quem eram os dois ministros de Durão Barroso que frequentavam o Parque", idem), aos magistrados e aos polícias.



A cabala azul é que os rapazes da Casa Pia e o Parque Eduardo VII foram de facto molestados, abusados, violados por uma série de políticos, "figuras públicas" e poderosos. Gente habituada à prepotência, aos prazeres mais escondidos e gozando de um sentimento de impunidade, pensando que pode fazer o que quer e que está acima do comum cidadão. Um grupo de corajosos magistrados e polícias quis ir até ao fim do crime e, sem temer a importância, nomeada e cargo dos pedófilos, começou a investigá-los sem complacência. Doa a quem doer. Prenderam Pedroso, que está-se mesmo a ver o que é. E prenderiam Ferro Rodrigues se fosse preciso, ou o Presidente da República à mais leve suspeita. Pouco importa os métodos, escutas abusivas, devassas, pesca à linha fina, o que importa é que nenhum poderoso deixasse de pagar pelos seus crimes. Depois, as coisas começaram a correr mal. Pedroso é libertado e ilibado. O processo começa a encravar. Percebe-se bem porquê: as protecções dos poderosos começaram a funcionar e nelas estava envolvida a Maçonaria e as solidariedades maçónicas, fortes no aparelho judicial e no PS. E, sentença a sentença, o caso Casa Pia foi sendo desmantelado, ficando apenas para condenar o pobre do "Bibi", escapando todos os poderosos. Assustados, os políticos mudaram a legislação para se proteger, impedindo as escutas telefónicas que os podiam expor e abrindo a porta, pela dificuldade de prisão preventiva, ao surto de criminalidade dos nossos dias. O sentimento de impunidade dos poderosos continua e o "povo" revolta-se cada vez mais com esta injustiça.

Aqui estão as duas cabalas nas suas linhas gerais. O uso da palavra "cabala" no seu sentido corrente, de uma conspiração ou "urdidura", é por uma vez fiel ao seu sentido religioso no judaísmo: na leitura da Tora há vários modos possíveis de entendimento, desde o sentido directo ou literal (Peshat, "simples"), ao sentido "secreto", misterioso (Sod), que constitui a cabala em si mesma. Também aqui, a realidade do processo Casa Pia, tão fugidio e contraditório ele nos parece mesmo no seu sentido "simples", nos oferece tão amplas suspeitas sobre o seu sentido "misterioso" que a existência de teorias da cabala não é surpreendente.


Para qualquer cidadão comum, as decisões judiciais aparecem como sendo contraditórias entre si - como se pode entender que Pedroso ganhe uma indemnização ao Estado, ao mesmo tempo que outra decisão judicial o impede de processar os seus acusadores por considerar que o fizeram sem "dolo" e que as suas denúncias permanecem relevantes para o resto do processo - e não há argumentação jurídica que possa contrariar o bom senso mais comum que nos diz que tudo isto não se percebe. Claro que há sempre explicações intermédias, sem cabalas pelo meio, de que mais uma vez estamos perante um sistema judicial muito incompetente, que acabou, pela sua incompetência e pela ambição justicialista que ataca alguns magistrados, por "estragar" a punição de um crime que ninguém nega ter existido. Porque alguém abusou das crianças da Casa Pia, não é verdade?

Mas nestas teorias da cabala, uma coisa para mim é surpreendente, a grande indiferença existente quanto ao seu esclarecimento, a aceitação de que é normal dizer que conspirações desta gravidade são possíveis na democracia portuguesa, sem tirar consequências. Porque, se qualquer das versões, e em particular a do PS, tem alguma coisa de verdade, nós não vivemos num Estado de direito, mas sim num meio em que governantes poderosos, máfias organizadas, organizações secretas ou discretas, controlam o Estado português. Não me parece que se deva cruzar os braços ao aspecto político desta questão, que está muito para além do processo Casa Pia.

(Versão do Público de 13 de Setembro de 2008.)

*
Contrariamente a si, a principal sensação que a indiferença relativa ao esclarecimento das teorias da cabala desperta em mim não é a surpresa. É a preocupação. Pois se a generalidade das pessoas fica indiferente perante tudo isto é porque os portugueses já encaram como normal que «eles» façam destas coisas sem serem apanhados. E a indiferença nestes casos não deve nunca ser confundida com ausência de revolta. O meu principal receio é que surja um populista carismático que use esta revolta larvar para atacar toda a classe política. E, se isso acontecer, muita gente vai sofrer e, na grande maioria dos casos, serão pessoas que nem têm qualquer responsabilidade pelo actual estado da situação.

(José Carlos Santos)

*

A propósito da indiferença dos "cidadãos comuns" em relação ao desfecho do caso Casa Pia, não creio que o termo mais exacto seja indiferença, mas resignação. Olhando para trás, mesmo esquecendo o período do Estado Novo e vendo só a história dos grandes crimes e julgamentos ocorridos no pós 25 de Abril, os "cidadãos comuns" não conseguem citar um só exemplo de alguém importante (os tais "poderosos") que tenha sido preso, julgado e condenado. A maioria não acredita em coincidências. Se juntarmos a estes casos todas as suspeitas que envolvem o mundo do futebol, percebemos melhor a sensação de impotência e resignação. Apesar de se tratar de um "mundo" diariamente ensombrado por escândalos, acusações, directas ou indirectas, suspeitas de corrupção (que até deram um filme), escutas que sugerem corrupção, árbitros condenados, equipas penalizadas (e a lista poderia arrastar-se), a verdade é que as penalizações efectivas só atingem os elementos mais fracos. Não é à toa que nas conversas de café e de ocasião e nos blogues se ouve tanta gente dizer que Vale e Azevedo só foi preso e condenado "porque já não era presidente do Benfica", pois caso contrário continuaria "intocável". Essa sensação de impunidade dos "poderosos" é sentida por muita gente. E todos estes casos mal trabalhados, mal explicados, contribuem para essa desconfiança. Depois, como bem diz o seu leitor José Carlos Santos, basta chegar alguém populista e carismático para dominar a política com um discurso anti-político (e já se ouviram vozes a citar o nome de Marinho Pinto para esse papel).

(Paulo Agostinho)

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]