ABRUPTO

7.9.08


O QUE FAZ FALTA: ESCRUTÍNIO, TÓNUS CRÍTICO, CRÍTICA (2)

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta

(Zeca Afonso)
1ª Parte do artigo.
4. Manipulação de estatísticas
A manipulação de estatísticas é uma especialidade do primeiro-ministro. Chega a ser chocante como são manipulados os números do emprego/desemprego, contra todas as evidências e realidades. O primeiro-ministro tem uma técnica que qualquer professor conhece nos estudantes que querem disfarçar o que não sabem: argumenta que o que lhe perguntam (ou o facto que é suposto comentar) não é "importante", o que é "importante" é um factóide lateral, uma comparação conveniente com uma série qualquer sem valor estatístico, ou com um facto desirmanado do seu conjunto. Um truque estatístico típico é a comparação (sem qualquer valor estatístico) com os anos 2002-2004 dos governos PSD/CDS, esquecendo que, na esmagadora maioria dos casos, os resultados desses anos só se compreendem integrados nas séries estatísticas mais longas, em particular incluindo os governos Guterres, de que José Sócrates fez parte. A realidade é que nos últimos treze anos é o PS que governa Portugal, com um pequeno hiato de três anos de governos PSD/CDS. Qualquer referência ao "passado", e ao que nele se fez ou não se fez, atinge em primeiro lugar o PS.
5. Ocultação de dados ou informações relevantes para o escrutínio de uma política.
Quando o ministro da Administração Interna alegou que desconhecia que número de polícias tinham saído, para se saber se, na relação entre novas entradas e saídas, havia um saldo positivo, não fez mais do que seguir uma política consistente neste Governo de ocultação sistemática das informações que pensa serem prejudiciais, não só para a apresentação propagandística das suas medidas como para a sua contestação. Embora já poucos se lembrem, a história futura do "caso Ota" há-de lembrar que foi exactamente assim que ele começou a ser polémico. Na fase inicial da contestação da Ota, já a matéria era tida como adquirida pela comunicação social, foram os blogues que exigiram a publicação dos estudos realizados para sustentar essa opção. A resposta inicial foi negativa, mas face a essa pressão, admitida pelo primeiro-ministro e ministro das Obras Públicas na Assembleia, lá foram colocados alguns dos estudos na Internet. A partir daí passou a ser claro para muitos que não só a opção estava mal pensada como faltavam elementos decisivos para o seu julgamento. Depois foi a bola de neve.

No momento em que escrevo, um número significativo de requerimentos existem na Assembleia da República sobre documentos básicos para o julgamento do plano de obras públicas do Governo, em particular no plano rodoviário. O Governo nega-se a responder.

6. Pressões para que não se faça o escrutínio de informações potencialmente danosas para o PM.
O facto singular que mais me preocupa na maneira como este Governo, em particular o primeiro-ministro, usa o poder foi o modo como reagiu às dúvidas e acusações sobre dois aspectos do seu currículo profissional, as suas qualificações académicas e a sua actividade de autor de projectos de casas. Houve um cheiro de Watergate no episódio. Em nenhum dos casos as dúvidas fundamentais foram respondidas e muitos aspectos obscuros persistem por esclarecer. Alguns dos documentos são particularmente bizarros, como as emendas ao currículo na Assembleia da República, e o primeiro-ministro mostrou um conceito muito elástico da verdade, fugindo de responder ao que lhe perguntavam.

Mas ainda pior e mais preocupante foi o modo como se tratou este "caso", com o Governo e o primeiro-ministro a tudo fazerem primeiro para o abafar, quando ele ainda estava confinado a um blogue, depois para o circunscrever ao jornal que o lançou, e, depois de este ter alastrado, para desacreditar quem o tinha suscitado, o Público. Tratava-se de uma investigação com inteira legitimidade jornalística, visto que em qualquer país democrático é normal o escrutínio do currículo profissional do primeiro-ministro, que aliás estava oficialmente publicado pelo Governo e depois foi alterado.

O modo como quem teve coragem de suscitar estes casos foi pressionado, atacado na sua credibilidade e isolado, com a conivência de muitos silêncios incomodados, foi e é um dos mais sinistros sinais do modo como este Governo condiciona a liberdade crítica através de um sistema de pressões explícitas e implícitas.
7. Manipulação de informação através da comunicação social controlada pelo Governo.
Depois de ter escrito a primeira parte deste artigo, a RTP ofereceu um excelente exemplo daquilo para que serve ao Governo: no dia 30 de Agosto, no noticiário das 13h, a RTP mostrou serviço. Estava-se em pleno apogeu de notícias sobre a criminalidade violenta e o MAI tinha metido os pés pelas mãos nas entrevistas dos dias anteriores. Uma operação espectacular apresentada como sendo de resposta à criminalidade violenta, convenientemente acompanhada por tudo o que é jornalista (o que diz muito sobre a sua confidencialidade), punha na rua centenas de polícias, GNR, carros e helicópteros. Na verdade, o que se estava a passar tinha bem pouco a ver com a criminalidade violenta, mas era apenas uma gigantesca operação stop, dando os resultados que se esperam de uma operação stop: condução com excesso de álcool, doses de droga para consumo, meia dúzia de armas brancas. O puxar de todos os recursos para essa operação dava aliás uma excelente oportunidade ao crime, visto que o policiamento, já de si escasso, de muito do país, ficou ainda mais ausente. Mas era preciso fazer o show e o show foi feito. Não terá continuidade, porque não há recursos e a sua eficácia é limitada a crimes menores, mas passa bem na televisão.

Mas a RTP fez mais. Fez uma peça sobre a criminalidade, montada com as declarações que tinham feito na véspera o PP e o PSD, intercaladas por declarações especiais feitas para o efeito do ministro dos Assuntos Parlamentares, por coincidência o ministro da tutela da RTP. Ou seja, tudo estava montado para a peça servir para o ministro responder na televisão, sempre com o direito à última palavra numa peça de encomenda. A coisa era tão escandalosa que à noite já não foi repetida, dados os protestos.
8. Áreas importantes da governação não têm qualquer escrutínio.
O Governo beneficia da falta de atenção comunicacional a áreas inteiras da governação que não têm qualquer escrutínio. Isso deve-se quer à falta de especialização ou de interesse dos jornalistas, quer a uma ideia de falso consenso sobre essas matérias. Entre as áreas que não têm qualquer escrutínio sistemático contam-se a cultura, a defesa, os negócios estrangeiros. A cultura é talvez um dos casos mais flagrantes de falta de qualquer tratamento comunicacional crítico, o que igualmente traduz quer a pequenez do nosso meio cultural, sem grande espaço para a independência crítica, quer o modo como se condicionam as "imagens" na área cultural. O ministro entrou incensado pelas vozes do sector e basta isso para depois ninguém lhe tocar.
Outro caso, mais grave ainda, foi a presidência portuguesa da UE, em que o escrutínio crítico desaparece substituído por um "jornalismo de causas" que partilha com o Governo um "desígnio" nacional e patriótico e "europeísta".
9. Colocação no mesmo plano das propostas da oposição e das do Governo e pressões para que a discussão se centre nas propostas da oposição "igualizando-as" às do Governo.
Há uma diferença fundamental entre a oposição e o Governo, é que o Governo é que detém o poder, é ele o primeiro a dever ser escrutinado por todos os meios possíveis. No essencial, é ele que "faz" ou não "faz", é ele que detém os meios e a informação, os peritos e o know how, o conhecimento detalhado das condições financeiras e outras. Isso não significa que a oposição não deva igualmente ser escrutinada nas suas propostas. Só que não é a mesma coisa, nem deve parecer que é a mesma coisa. Aliás, existe muitas vezes o erro de a oposição querer parecer que é idêntica ao Governo na sua capacidade de apresentar propostas de governação. Não é, nem deve procurar ser, deve apresentar propostas que tenham outra lógica, a de alternativas de políticas, mas evitar na maioria dos casos a apresentação de medidas concretas no mesmo plano de uma proposta governamental. Interessa aos governos esta "igualização" comunicacional como típica política de distracção e desresponsabilização.
*

Estes são alguns exemplos do modo como o actual Governo de José Sócrates foge de ser escrutinado como devia e como um sistema complacente e acrítico o protege de revelar os medíocres resultados de uma governação que, à partida, tinha excepcionais e únicas condições para ser diferente.

(Versão do Público de 6 de Setembro de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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