Que o Primeiro-ministro e dirigente do PS José Sócrates não têm qualquer espécie de ideologia e é um puro pragmático, já nós sabemos. Que ele é tanto de “esquerda” como de “direita” conforme as conveniências, já nós sabemos. Que o único fio condutor do seu discurso é o auto-elogio mais ou menos arrogante, suportado por muita propaganda, também já nós sabemos. Que o outro fio condutor é o ataque sistemático e também arrogante a tudo o que mexe e lhe parece oposição, também nós sabemos. O que sabemos menos, porque estamos muito adormecidos para saltar do sofá quando devemos num tumulto de indignação, são os estragos que este homem e o seu governo estão a fazer ao país e de que um bom exemplo é o discurso anti-capitalista de Guimarães.
No dia em que acordou na versão José Francisco Sócrates Louça, já que a versão José Paulo Sócrates Portas, que assumirá num ápice se for preciso, é um pouco incómoda face à flacidez dos resultados em matéria de segurança, este híbrido veio à rua em Guimarães e fez estragos. Ele, como agora só pensa nos votos e nas eleições, resolveu atirar-se contra a bolsa e o mercado financeiro e instigar o povo ao levantamento contra os ricos e poderosos. Não se atirou contra os “excessos” daquilo que os socialistas chamam a “economia de casino”, mas sim contra a coisa em si, a bolsa e o mercado de capitais, esse sinistro local onde multidões de capitalistas de casaca, barriga e chapéu alto andam a provocar a miséria dos portugueses por conta de Bush e dos EUA. Se ele não conseguir cumprir nenhuma das promessas que fez (que não estavam centradas no controlo das finanças públicas, convém lembrar), já tem um culpado a quem apontar o dedo, o capitalismo “desenfreado”, representado em Portugal pelo PSD, que anda a provocar uma “crise” mundial.
O que é irónico é que José Francisco Sócrates Louça não compreende que ao actuar assim dá votos ao genuíno Louça, ao genuíno Jerónimo e à genuína Manuela, e que pelo caminho acicatará ódios que depois não voltam com facilidade à lâmpada do génio, e ajudando a destruir alguns mecanismos, como a bolsa, fundamentais para a saúde da nossa economia.
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Por estes dias, a esquerda radical, tem andado especialmente entusiasmada em denunciar os horrores do capitalismo e o “monstro” a que chamam neoliberalismo. Para muitos, a profecia marxista, de que o capitalismo entregue a si próprio, se devoraria, está a confirmar-se com a recente crise no sistema financeiro. O momento é portanto, de regozijo e inquietude. Imagino mesmo que na cabeça de muitos o fim do capitalismo esteja próximo.
Perante os inúmeros artigos e posts que se vão lendo, e intervenções públicas que se vão ouvindo, parece que mundo é cada vez mais um lugar horrível, onde nunca se viveu tão mal. E se antes era a miséria de África, que fazia disparar os seus corações numa denúncia feroz aos males do capitalismo, hoje chega até mesmo a “Velha Europa”, agora vendida ao neoliberalismo, para denunciar ferozmente essa fonte de todos os males.
Por estes dias, de tanta denúncia (leia-se, propaganda), de indescritíveis horrores levados a cabo pelos Senhores do Capitalismo, recordo Orwel, citando um pequeno excerto de uma das suas obras mais célebres, “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”:
“(...) Outrora (dizia o livro), antes da Gloriosa Revolução, Londres não era a bela cidade que hoje conhecemos. Era um povoado cinzento, sujo, miserável, onde quase ninguém tinha comida que chegasse e onde centenas, milhares de pobres, não tinham que calçar, nem telhado para se abrigarem. Crianças da tua idade eram obrigadas a trabalhar para patrões cruéis que as chicoteavam se trabalhassem demasiado devagar e as alimentavam a côdeas de pão duro e água. Mas no meio de toda esta terrível pobreza subsistiam umas quantas casas enormes, belíssimas, onde viviam homens ricos que chegavam a ter trinta criados para cuidarem deles. Estes homens ricos chamavam-se capitalistas. Costumavam ser gordos e feios, com cara de maus, como o da foto na página ao lado. Como vês, traz um casaco preto e comprido, a que chamavam casaca, e um chapéu esquisito, brilhante, em forma de chaminé, a que chamava cartola. Era este o uniforme dos capitalistas, mais ninguém podia usá-lo senão eles. Os capitalistas eram donos de tudo quanto há no mundo, os demais indivíduos apenas seus escravos. Donos da terra toda, de todas as casas, todas as fábricas, todo o dinheiro. Se alguém lhes desobedecesse podiam mandá-lo para a prisão, ou tirar-lhe o emprego, deixando-o morrer à fome. (...)”