ABRUPTO

11.11.07


UMA HISTÓRIA DE DOIS MUSEUS

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Os museus não costumam ser motivo de grandes polémicas em Portugal, embora o sejam por vezes lá fora. Mas não são imunes a discussões entre a história e a política que confrontam as suas "pedras mortas" com a vida que parece nunca deixarem de ter. Com o retorno de uma discussão sobre a "memória" e a história, e por um debate público à volta do "esquecimento" da ditadura e da guerra colonial alimentado também pelo exemplo espanhol da Lei da Memória, retorna uma polémica sobre o que deve ou não deve estar dentro de um museu e, estando-o, como nos deve ser apresentado. Escrevi memória entre aspas para se perceber que é uma determinada "memória" ainda recente, a que comporta um elemento pedagógico, programático, ilustrativo, de denúncia moral, em detrimento de uma memória factual histórica, limpa tanto quanto se pode considerar alguma coisa da história como limpa.

Não há nesta matéria tipos ideais, tudo está impregnado. Mas podem estabelecer-se diferenças qualitativas entre projectos museológicos e santuários, mesmo apesar da impregnação inevitável. Dois museus, um existente, o do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, outro inexistente, o suscitado pela intenção da autarquia de Santa Comba Dão de fazer um "Museu Salazar", levantam a questão de fundo de saber como lidar com a história que ainda está viva e mexe.

A discussão sobre o neo-realismo não é tão simples, inequívoca e fechada como parece. Num debate em que participei, exactamente no Museu do Neo-Realismo, dois pontos polémicos mostram como muita coisa permanece em aberto na definição das fronteiras de tal museu. Um foi suscitado por mim e pode ser assim colocado: deve o Museu do Neo-Realismo ignorar as produções oriundas da extrema-esquerda que são subsidiárias de uma estética e duma política que, num sentido largo, faz parte do mundo do comunismo do século XX? É verdade que essa produção é muito menor, por regra de má qualidade, mas também no museu se acolhem livros, revistas, quadros e filmes de muita má qualidade estética mas representativos da corrente que dá o nome ao museu. Quando falo dessas produções da extrema-esquerda, refiro-me às canções de Tino Flores, às peças de teatro na emigração por grupos de "teatro operário", e aos poemas, contos e peças apresentadas, por exemplo, nos Jogos Florais organizados pelo Salto em Paris, ou publicadas em efémeros jornais clandestinos. A mesma ilusão romântica revolucionária que Eduardo Lourenço descreveu como o âmago do neo-realismo português, os mesmos paradigmas estéticos, o mesmo tipo de heróis e vilões, a mesma visão social e política estão presentes nessa literatura, nesse grafismo, mesmo quando as imagens que ilustram os textos têm os olhos em bico, em imitação dos cartazes chineses da Revolução Cultural. O idílio com a literatura chinesa e albanesa não é muito diferente do enlevo pelo triângulo amoroso operário-kolkoziana-tractor dos nossos neo-realistas.

Todas estas produções não ocuparão mais do que uma pequena estante, mas deve essa estante ter lugar num museu que guarda a 90 por cento obras de autores para quem o PCP era a encarnação do destino manifesto? A resposta a esta pergunta pode ser a diferença entre um museu ideologicamente fechado ou historicamente aberto e este dilema acompanhou sempre o Museu do Neo-Realismo. A existência do museu não é isenta de polémica, mas este tem crescido e melhorado porque todas as ambiguidades têm sido sempre resolvidas a favor do tratamento histórico do movimento que lhe dá o nome, com distanciação científica e histórica. Isso significa que o Museu do Neo-Realismo é uma realização de mérito, útil para o conhecimento da nossa história literária, artística, social e política, e uma efectiva valorização identitária para a região de Vila Franca de Xira- Alhandra-Póvoa de Santa Iria, uma das zonas emblemáticas do neo-realismo.

Capa de Alavanca, órgão do Centro Outubro, 1973


O segundo problema levantado nessa discussão no Museu do Neo-Realismo permite-me passar para o outro museu, virtual e polémico, o de Salazar em Santa Comba Dão. No debate este problema foi colocado por Luís Filipe Rocha quando perguntou se, se o que contava era a estética, não devia estar no museu o filme A Revolução de Maio de António Lopes Ribeiro? O filme é a história de uma conversão à "revolução" que, invertida a polaridade política das figuras, contaria a mesma história da mesma maneira fílmica. Se onde estava o bombista comunista convertido ao Estado Novo e a Salazar pelo agente da PIDE, ficasse um exilado "branco" regressado à URSS, a sua Santa Rússia, para vingar a família convertido por um tchekista à utopia dos sovietes, haveria alguma diferença quer na história narrativa, quer na maneira como era contada por um cineasta que tinha aprendido na escola de Eisenstein como nos estúdios do expressionismo alemão?



César Valente, o perigoso "profissional da desordem", prestes a ser convertido por Maria Clara.

Se tivesse que responder à pergunta de Luís Filipe Rocha, diria que sim, numa parte do museu em que se mostrasse como a estética do neo-realismo, principalmente a filo-soviética, comunicava esteticamente com a do totalitarismo nazi. É esta capacidade de comparação (e distanciação) que afasta o museu da apologética e permite que se "aprenda". O problema do hipotético Museu de Salazar em Santa Comba Dão ganha com a experiência do Museu do Neo-Realismo, que só se tornou um museu no pleno sentido do termo quando progressivamente abandonou a tentação da apologética. Se o museu de Vila Franca fosse um altar do jdanovismo estético, não ficaria mal na sede do PCP ou na Festa do Avante!, mas eu seria o primeiro a exigir que não houvesse um tostão do erário público para o financiar e, muito menos, reconhecer-lhe "utilidade pública". O mesmo problema se coloca para o hipotético Museu Salazar: se o património que se pretende colocar num museu se destinar a fazer uma espécie de santuário a Salazar, como se passa na China ou na Coreia do Norte com as casas onde nasceram os Grandes Líderes, a autarquia pode fazê-lo. Porém, não será um museu mas um altar e nem um tostão de dinheiro dos contribuintes o deve financiar.

Isso não significa que, ao contrário dos signatários do abaixo-assinado entregue na Assembleia da República, defenda que o museu deva ser proibido, pois, se assim fosse, violar-se-ia o princípio da liberdade, que, insisto, deve ser sempre exigida para quem não pensa como nós. Para além disso, do ponto de vista cívico, não considero que haja nenhum mal em haver um altar a Salazar em Santa Comba Dão. Aí irão em peregrinação os mesmos saudosistas que se reúnem no 28 de Maio nos restaurantes, e será pouco mais do que uma curiosidade local, a acumular pó ao fim de dois ou três anos de excitação. O que lá estará fora do contexto são pouco mais do que meia dúzia de trastes pessoais de Salazar. Dará uma imagem a contrario da austeridade e "pobreza" do seu dono em contraste com o percebido nepotismo dos políticos em democracia? Dará. Mas essa imagem existe, com museu ou sem ele, porque o problema político do salazarismo "popular" é muito mais vasto do que o museu-altar que venha a existir em Santa Comba. É uma herança de mentalidade antidemocrática que existe à esquerda e à direita, que vem dos 48 anos de Estado Novo e que não desaparece se não houver museu.

O Museu Salazar desejado em Santa Comba Dão é uma má política de valorização da autarquia, que ganhava muito mais em preservar esses bens e a casa de Salazar e tentar integrá-los num tratamento histórico e científico distanciado. Ou será que a autarquia se pensa a si própria no "espírito" de pobreza do seu homenageado? Quererá o mesmo país pobre e rural, atrasado e limpinho, com altas taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil e toneladas de ouro no Banco de Portugal, que Salazar preferia aos riscos da revolução social que significava a industrialização e o "progresso"? Seguirá o senhor presidente da câmara o exemplo austero de Salazar e porá uma mantinha nos seus joelhos e dos vereadores para poupar à autarquia umas despesas suplementares desnecessárias? Que mal tem a mantinha se o dinheiro poupado dá para um fontanário?

Se Santa Comba Dão se pretende valorizar como terra de futuro pelo culto de Salazar, dá de si uma péssima imagem, como daria a sua congénere de Vila Franca de Xira se se ficasse pela nostalgia dos meninos dos esteiros e dos trolhas de Pomar. Pensem nisso.

(No Público de 10 de Novembro de 2007)

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