ABRUPTO

4.11.07


A PRIVACIDADE E O USO DOS SENTIMENTOS NA PROPAGANDA POLÍTICA



A rápida erosão da privacidade é uma das consequências mais evidentes do ascenso da demagogia, da massificação das sociedades contemporâneas no consumo de bens culturais, da utilização perversa de novas tecnologias para disseminar boatos e calúnias, controlar, espiar e "revelar", culminando tudo isto numa vida pública dominada pelo espectáculo e pelo sentimento, corroendo a democracia por dentro.

É verdade que, nesta matéria, como em muitas outras, há uma história social que nem sempre vemos com clareza. De facto, os mais pobres nunca valorizaram a privacidade porque nunca a tiveram. Vivendo em condições de promiscuidade num mundo da "aldeia", ou atirados para as "ilhas", para as "vilas" e depois para as várias versões dos HLM franceses, dos bairros sociais, dos subúrbios, a parte de "baixo" da sociedade não tinha "espaço" para essas delícias da riqueza que era ter quartos individuais. O luxo e o dinheiro protegiam, como ainda protegem, a privacidade limitando o "acesso", mas nem por isso se pode considerar a privacidade como um privilégio dos de "cima". A privacidade é, no seu melhor sentido, um dos adquiridos do mundo burguês, da casa, do espaço familiar ou reservado, da liberdade de mostrar ou esconder o que nos parece ser a última propriedade: o mundo próprio do ser. Nasceu, como muito do que consideramos adquirido nos nossos direitos, liberdades e garantias, do mundo dos quadros de Vermeer, da revolução vinda do capitalismo mercantil da Holanda da Idade do Ouro. Como não estou disposto a abdicar desse espírito humanista no melhor sentido da palavra, não abdico do ter nem do ser privado, em favor de uma nova forma demagógica do colectivismo voyeurista das multidões.

Não é fácil, pelo modo como as coisas caminham em Portugal, seguindo, aliás, as passadas de outros países, a que se soma a habitual mediocridade do nosso meio. Hoje temos uma vida pública que se alimenta a si própria com uma "comida" sentimental e emotiva banalizada, com um discurso superficial sobre tudo, com um ataque à razão a favor da pieguice televisiva, excitada em telejornais de crimes, doenças, acidentes e "casos", caso da "pequena Maddie", caso Esmeralda, caso Casa Pia, casos de pedofilia, importantes e irrelevantes, misturados num mesmo tipo de narrativa excitada nos directos. Neste mundo, o mais pequeno pretexto serve para deixar de haver esfera íntima e privada, seja para um antigo inspector da PJ vir falar da vida sexual dos McCann, seja para uma multidão dos novos interpretadores dos sentimentos, psiquiatras, psicólogos, pedopsiquiatras e pedopsicólogos, a nova fauna comunicacional, nos explicarem as almas perdidas nos seus estados perturbados, seja do "pai do coração" versus o "pai biológico", seja na mãe matadora de um qualquer "bebé", arrastada para gaúdio de outras mulheres ululantes a gritar "assassina!", nuns pobres jeans coçados e numas algemas, seja na súbita aparição pública do novo fantasma do susto colectivo, o pedófilo que, vindo da Rede negra e obscura dos chats ou da escola e da sacristia, se prepara para assaltar o único símbolo que resta da inocência do mundo, as crianças.

Este caminho é cada vez mais trilhado, está-se a tornar normal este assalto à intimidade e à privacidade. Já disse isto várias vezes, repito-me certamente, convicto de que é um protesto ineficaz nos seus resultados. E o pior ainda está para vir, porque, no plano mais vasto da educação cívica, estamos a gerar uma juventude que cada vez menos preza a privacidade e a intimidade. Os milhares de jovens que se expõem na Rede, nos blogues, nos sítios "sociais", que usam o telemóvel como instrumento de controlo, que aceitam com absoluta normalidade que este tenha uma câmara de vídeo, ou um localizador de GPS que permita a outrem saber sempre onde se está, crescem sem prezar o seu espaço íntimo e privado. O mundo em que vão viver é povoado por câmaras de vigilância, escutas, controlos electrónicos de identidade, redes de informação que vão do cartão de crédito à Via Verde, e isso parece-lhes absolutamente normal. Juntam-se assim ao povo que espreita a saída dos presos nos tribunais e que acha que só se preocupa com a privacidade quem tem coisas para esconder.

A ideologia deste voyeurismo tem nas revistas cor-de-rosa a sua melhor expressão, embora na Rede também já haja sinais muito preocupantes das mesmas tendências. "Assumir" é uma das palavras-chave da nova promiscuidade pública. Nos seus raros textos editoriais, as revistas cor-de-rosa e os seus cronistas apelam a "assumir" namoros, traições, noivados, fugas, gravidezes, apetites, orientações sexuais, parceiros e outras "assunções" que servem de alimento a essas publicações. Verdade seja dita que, mais do que a "assunção" pública de qualquer destas coisas, com a consequente perda de mistério e segredo, logo de valor cor-de-rosa, o que essas revistas desejam é "assumir" o papel castigador de serem elas, em fotos indiscretas tiradas às escondidas ou em colunas "sociais" escritas numa linguagem só aparentemente críptica, a "revelar" aquilo que ou não se revela porque se deseja privado, ou porque não se deseja público. A privacidade e a sua defesa tornam-se assim uma fraqueza moral, um vício secreto que se esconde, que não se "assume".

Cada vez mais essas revistas, alguns programas televisivos e locais na Rede começam a receber uma atenção já mais profissionalizada, que usa o voyeurismo público e a erosão da privacidade para intervir no mercado demagógico dos sentimentos, com objectivos quer de manipulação da opinião pública, quer de promoção social e política de personalidades, de contenção de danos, ou, menos visivelmente, para conduzir campanhas hostis contra adversários. Uma das características deste novo espaço demagógico e sentimental é a sua fácil utilização e manipulação por profissionais que o conhecem bem, com as suas regras e tendências, como é o caso da nova geração de agências de comunicação.

Onde antes havia uma "assunção" pública forçada ou meio forçada pelos paparazzi que habitam o aeroporto de Lisboa ou o espaço entre o Camões e a Rua do Carmo, ou alguns locais mais in da cidade, agora existe uma "assunção" desejada, estimulada e controlada por agências de comunicação. O caso mais recente é a utilização da vida privada por Luís Filipe Menezes, de que resultou capas em todas as revistas do "coração", entrevistas, declarações e fotos, não só consentidas como encenadas, com a curiosidade de se perceber a mão da agência de comunicação, aliás admitida publicamente, na similitude da encenação e das "mensagens" do produto final. Já não é a exposição pública desejada e consentida por quem gosta de viver no mundo cor-de-rosa da Caras, da Nova Gente, da Flash, etc., etc., e a quem essa exposição é agradável e socialmente desejada, mas de quem hoje utiliza a vida privada como instrumento de acção política, como mecanismo de envio de mensagens e imagens que se destinam a obter dividendos políticos no crucial mercado do sentimento demagógico. É sempre um caminho arriscado a prazo, como Santana Lopes ou Manuel Maria Carrilho perceberam à sua custa, porque costuma dar para o torto, pela própria natureza da exposição pública e da sua procura de transgressão como valorizador da notícia. Mas, entretanto, vai dando frutos.

Existe outro problema, que transcende a vontade de cada um jogar este jogo arriscado, e que é que, por cada político ou "figura pública" que se expõe, diminui o espaço de privacidade dos que não o desejam fazer, abrindo-se caminho para a impunidade voyeurista cor-de-rosa. A erosão da esfera íntima que deveria ser intocável mesmo nas chamadas "figuras públicas", e da esfera privada, mesmo com alguma perda de "espaço" nas "figuras públicas", é um mau caminho para uma sociedade que preze liberdades e direitos.

(No Público de 3 de Novembro de 2007)

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Acabei de ler no seu blog "A PRIVACIDADE E O USO DOS SENTIMENTOS NA PROPAGANDA POLÍTICA", concordo totalmente com o que escreveu.

Também eu me questiono e me perturbo com o que se passa com a privacidade, ou melhor, com a ausência dela um pouco por todo o lado. O que mais me perturba e me deixa realmente preocupado são as pessoas e especialmente os mais jovens, não se preocuparem minimamente com a sua privacidade.

Existem duas formas de pensamento que se distinguem até pela idade das pessoas a quem se lhes pede que dêem opinião sobre este assunto.

A primeira, é o argumento de que "quem não deve não teme", esta forma de pensar encontro-a geralmente associada a pessoas com mais de 35 anos.
Como é óbvio este argumento não colhe, se assim fosse porquê por exemplo enviar uma carta e não um postal pelos correios, se nada tenho a temer porque não enviar postais sobre qualquer assunto que tenha a tratar, se assim fosse não haveria necessidade de haver leis sobre a inviolabilidade da correspondência.

A segunda forma de pensamento que associo na maioria dos casos a jovens, é algo ainda pior, é o total desconhecimento da sua privacidade estar em causa ou algo que considero ainda mais grave, a total aceitação da perda dessa privacidade.

Os ditadores deste mundo, os potenciais "big brothers" Orwellianos devem estar a aplaudir e até a fomentar esta cada vez maior perda de privacidade, que no limite acabará por ter graves implicações nas sociedades que se querem democráticas e livres.

Para mim é extremamente difícil por vezes explicar que não me inscrevo em determinados sites como hi5's, que uso encriptação nos meus mails etc etc. e depois tentar mostrar o porquê dessa situação, infelizmente geralmente as pessoas a quem explico estas coisas básicas ou dizem que sou maluquinho ou acham que não há problema nenhum em destruirem a sua privacidade/liberdade.

(RJNunes)

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Ainda a propósito do post que colocou sobre privacidade, encontrei esta notícia sobre os EUA e o que pretendem fazer com o mail.

é por estas e por outras que mesmo não tendo nada a temer o meu mail usualmente vai encripatado. : No email privacy rights under Constitution, US gov claims.

(RJNunes)

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