ABRUPTO

1.11.07


ICONOGRAFIA ESQUERDISTA PORTUGUESA 2



O conjunto de capas originais para o Programa da lista "Por um Ensino ao Serviço do Povo", que concorreu às eleições na AE da Faculdade de Medicina do Porto em 1973, é um dos melhores exemplos de iconografia esquerdista. A autora dos desenhos foi Maria José Abrunhosa, então estudante de arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, na altura militante da UEC(ML) com o pseudónimo "Saúl". Depois do 25 de Abril, Maria José Abrunhosa teve um papel activo no SAAL, e trabalhou como arquitecta na Guarda, onde foi uma voz activa contra a corrupção autárquica, deixando aí vários trabalhos de sua autoria. Depois da sua morte em 1999, foi erguido no concelho da Guarda um pequeno monumento em sua memória, comemorando a sua actuação como arquitecta, mas acima de tudo lembrando a sua intervenção cívica local.

Maria José Abrunhosa foi autora de capas, desenhos em comunicados e cartazes em serigrafia, publicados anonimamente em publicações associativas e políticas clandestinas, que combinavam um traço original com uma clara influência da iconografia chinesa maoísta. Outras capas deste Programa mostram essa influência chinesa mais nitidamente (mais tarde voltarei ao Programa de 1973).




(Um grupo de jovens esquerdistas na década de 70.)

O que é interessante nestes desenhos é a rara representação realista dos estudantes (se abstraírmos da tendência para os olhos ficarem em bico), embora a seriedade, calma e disciplina da cena da "Reunião de Curso" sejam idealizadas. As reuniões eram sempre muito mais tumultuosas do que esta representação pretendia.


No desenho que acompanha o caderno sobre "cultura e consciencialização dos estudantes", o que na prática significava a doutrinação política, mostra-se um grupo de estudantes a ver o Couraçado Potemkine de Eisenstein, um filme revolucionário soviético proibido, que não podia ser exibido nas salas de cinema. O filme circulava em várias cópias nos meios da oposição comunista e depois nos círculos estudantis esquerdistas. A representação da cena é também mais wishfull thinking do que realidade, dado que as projecções do filme eram feitas com cuidados conspirativos para que a PIDE não identificasse os donos das cópias e as apreendesse. Também aqui é preciso ter em conta que as tecnologias de reprodução do filme eram complicadas e caras, exigiam uma máquina com certo tamanho e as bobinas um manuseamento que implicava alguns conhecimentos técnicos.

(Continua.)

*

A propósito da sua referência ao Couraçado Potemkine, pensei em escrever-lhe, desisti num segundo momento, mas hoje não resisto. Recordo-me de ter visto o filme no Auditório da Reitoria da Universidade de Lisboa. Resta saber se foi antes ou imediatamente a seguir ao 25.4.74. Mas inclino-me firmemente para que tenha sido antes. Será que a memória me atraiçoou? Evidentemente, fiquei impressionada.

Muitos anos mais tarde, tive oportunidade de visitar o Museu do Cinema, em Londres, com a minha filha (naquela altura adolescente). Trata-se da mais surpreendente instalação museológica que conheci, com uma muitíssimo criativa interactividade com os visitantes.
Numa carruagem (presumo que tal como existiram na URSS), éramos introduzidos ao cinema de Eisenstein, com a apresentação de curtos sketches, por uma - como chamar-lhe - comissária do povo(?), vestida a rigor, com braçadeira vermelha no braço e sotaque a condizer. Voltei a ver uma passagem do Couraçado, assim como de outros filmes, explicados passo a passo. Ficámos a perceber ao certo a cena da escadaria e do carrinho de bebé e o que representavam as figuras que são vistas em primeiro plano.

A carruagem era apenas uma amostra das surpresas que o museu reservava. Mais tarde, fechou porque (explicaram eles) não era rentável. Uma perda irreparável.

(Cristina Baptista)

Etiquetas:


(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]