ABRUPTO

7.10.07


UMA UNIÃO EUROPEIA SEMIDEMOCRÁTICA, SEMIEUROPEIA, SEMIUNIÃO


Numa altura em que se perde de vez a possibilidade de os portugueses se pronunciarem sobre o novo tratado europeu, com o abandono do compromisso pela actual liderança do PSD de fazer um referendo, dá-se mais um passo num triste caminho de criar uma entidade internacional que é cada vez menos democrática e a quem entregamos cada vez mais a nossa soberania nacional. É uma decisão, por parte do PSD e do PS, inqualificável de falta de respeito pelos compromissos assumidos, tornada ainda mais grave quando é claramente manchada pelo facto de ter como principal razão o medo dos resultados do referendo. Ou seja, não se faz o referendo porque os eleitores europeus e portugueses não podem, por diktat, dizer "não". Os Governos e os grandes partidos europeus substituíram a democracia na legitimação do processo europeu por decisões iluminadas, tomadas in camera pelos Governos, sobre matérias decisivas para o futuro de todos nós.

A verdade é que esta era a última oportunidade de fazer um referendo útil, a última oportunidade de, votando sobre importantes mudanças na construção europeia, legitimar ou não o caminho recente da União. Não compreendo, aliás, por que razão os europeístas mais fervorosos a perderam, tanto quanto compreendo bem que os que olham para a UE apenas como manancial de subsídios não queiram quaisquer ondas no barco bruxelense, que já de há muito se habituaram a considerar o verdadeiro governo de todos nós.

Não é preciso ir mais longe para se perceber o que é hoje a UE do que o facto de, a semanas de se conhecer um novo tratado europeu, com as trombetas e as fanfarras que o vão acompanhar, ser espantoso que não haja qualquer discussão pública sobre o seu conteúdo e consequências. O nosso primeiro-ministro, o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, assim como o nosso Presidente da República, entendem que quanto menos se falar sobre o assunto, melhor e como deixou de haver a ténue, mas mesmo assim existente, oposição à violação do compromisso do PSD e do PS, o silêncio entre o incomodado e o arrogante são a norma.


Tudo isto numa altura em que é mais que óbvio que nem a Europa nem a UE estão bem. A Europa porque se encurralou num "modelo social" que a prazo só tem duas consequências: o empobrecimento lento, mas seguro, dos seus cidadãos e a incapacidade de sobreviver num mundo globalizado a não ser como "fortaleza Europa". É verdade que quer a leste, quer a oeste, há excepções e resistências a este modelo, com o corolário de que aí não se empobrece como no "meio" do núcleo duro do "modelo", mas a tendência defensiva e proteccionista na UE continua a verificar-se. Os franceses e as suas "excepções" são a vanguarda de uma Europa que ergue fronteiras face ao Google, à Microsoft, aos transgénicos, ao iTunes, aos filmes de Hollywood, mas também ao chá moçambicano, aos vinhos sul-africanos, ao algodão egípcio, aos produtos agrícolas africanos e... ao canalizador polaco.

Quanto à UE, propriamente dita, e às suas instituições, a crise dos últimos anos, simbolizada no devolver à procedência dos Governos que a fizeram a Constituição Europeia com o voto "não" de holandeses e franceses, está a torná-la cada vez mais governamental e burocrática, num movimento único de recusa da legitimidade de eleitores e de enfraquecimento dos Parlamentos nacionais. Normalmente, na discussão da legitimação popular só se referem as objecções ao voto referendário, odiado em Bruxelas e agora colocado debaixo do tapete, apresentado como um voto impuro, o que "mistura" tudo, o que é contra os Governos, o que é xenófobo, o que é excitado apenas pelas mesquinhas agendas nacionais, o que é antieuropeu e "soberanista".
Mas esta sanha contra os referendos esquece que Bruxelas também não gosta dos Parlamentos nacionais, cada vez mais frágeis face à burocracia da UE, que são sempre apresentados como saindo reforçados de cada novo tratado, quando na realidade quem vê sempre os seus poderes acrescidos é o Parlamento Europeu, depois o Conselho e por fim a Comissão. O caminho para uma UE semidemocrática, uma condição semelhante, na sua impossibilidade, a estar semigrávida, deu mais um passo esta semana em Portugal e vai dar muitos mais nas semanas próximas.

http://ec.europa.eu/education/programmes/eu-usa/index_en.htmlhttp://www.essex.ac.uk/armedcon/images/country/headings/flags/turkey_flag_large.bmphttp://www.politicsonline.com/blog/archives/government/index.php

Sobre este impasse democrático, para não lhe chamar outra coisa, projecta-se um impasse ainda maior: o do retorno ao confronto nacional e de uma sua pouco observada consequência, a dificuldade em definir fronteiras da UE. A questão turca, apenas a face mais visível de outras questões por resolver, igualmente graves, é uma projecção de velhas diferenças europeias nas suas políticas externas, assim como de interesses diferenciados em função da situação nacional de cada país. Se somarmos a isso a inexistência de política face à Federação Russa, que se manifesta nas dificuldades face ao Kosovo, os Balcãs em geral e no tratamento da Ucrânia, compreende-se que a UE pode tentar há muito tempo ter um telefone para o sucessor do senhor Kissinger, mas este falará sempre primeiro para o número 10 de Downing Street, para o Eliseu, para a Chancelaria de Berlim, e até para o castelo em Praga e para a sede do Governo polaco, muito antes de falar para Durão Barroso e muito menos para Solana.

Claro que, daqui a uns dias, se os polacos não estragarem a festa e cederem à chantagem, como tudo indica, nada disto conta, nada disto será referido, nada disto será lembrado. Haverá champanhe e sorrisos, muitos cumprimentos, muitas fotos em família. O futuro da Europa será radiosamente apresentado, como o fim de uma longa "crise" que foi ultrapassada. Depois da festa, ninguém quererá ir perguntar ao homem da rua o que ele pensa sobre aquilo que no dia seguinte será apresentado como facto consumado, que só meia dúzia de perturbadores reclamam dever ir a votos. Claro que em muitos países da Europa o eleitorado não tem a apatia e indiferença portuguesas, e podem bem obrigar os seus Governos a fazer referendos, contrariamente a todas as recomendações, mais do que isso, ordens, que Sarkozy e Merkel têm dado. E não demorará muito tempo até se ver que nenhum papel, muito menos o que agora sub-repticiamente se quer aprovar, resolverá a "crise". Os genuínos defensores da Europa de Jean Monnet e Schumann vão arrepender-se de não ter actuado a tempo, mas, nessa altura, pode ser tarde. E já não falta muito tempo para se compreender que foi assim.

(No Público de 6 de Outubro de 2007

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