ABRUPTO

28.10.07


UM REFERENDO CONTRA A INEVITABILIDADE


Ninguém melhor do que os historiadores conhece a inevitabilidade. Quando eles olham para trás, para a matéria do seu estudo, tudo já aconteceu, tudo habita num país estranho e estrangeiro, tudo é um fait acompli, tudo está, como o papagaio dos Monty Python, efectivamente morto, alimenta as margaridas e deu a alma ao criador. Os historiadores conhecem melhor do que ninguém a Realpolitik, as ilusões várias cujos túmulos semeiam a História, embora também saibam que elas são muitas vezes uma força imparável. Dão um papel à complexa e controversa interacção entre as personalidades e a lenta marcha das coisas, valorizam o tempo lento, e, mesmo nas excepções, nas catástrofes, nas revoluções, tendem a vê-las a posteriori, como se fossem, o resultado de um caminho inexorável. Sabem também que da História nunca ninguém aprende nada, que somos suficientemente adâmicos para fazer sempre as mesmas asneiras, inevitavelmente. Mas este ofício de historiador é propenso a um especial cinismo sobre as coisas, muitas vezes útil contra o optimismo beato corrente, mas também levando a uma impotência cívica. Em bom rigor, é sempre possível usar a História para não se fazer nada. Tudo parece inevitavelmente, inexoravelmente, imparavelmente escrito nas estrelas.

Não tenho por hábito comentar as opiniões dos que comigo partilham o espaço deste jornal, mas os argumentos de Rui Ramos e de Vasco Pulido Valente, expostos em artigos do Público, contra o referendo são posicionamentos políticos de per se numa polémica em curso. O que dizem faz parte de uma lucidez pessimista que me parece sempre muito necessária face a uma vida pública comezinha e vendida às oportunidades do presente, cega às consequências e feliz com a mediocridade que, para já, lhe é garantida. Em democracia, quando não se acredita na "felicidade terrestre", já não é mau viver na relativa facilidade do presente. Mas não chega e está muito menos adquirido do que se pensa. Por isso, partilhando com os seus textos quase todos os fundamentos, prevenções e suspeitas, considero que as suas conclusões conduzem a uma atitude de impotência cívica. Se se tomar à letra o que dizem, nunca ninguém fará nada, o cinismo tolherá todos os nossos passos e, em democracia, deixamos tudo aos outros.

Claro que ninguém é obrigado a sentir-se obrigado a agir no presente, nem a ser educador de nenhuma causa, nem a pretender mudar nada. Mas, quer Rui Ramos, quer Vasco Pulido Valente já assumiram compromissos com movimentos políticos (no PSD, no Compromisso Portugal) e, quando o fizeram (e fazem), sabiam certamente que não seria difícil encontrar toda uma lista de argumentos cínicos e de "lições" da História para apresentar esses compromissos como sendo tão frágeis como os de querer um referendo nos dias de hoje.

Voltemos ao referendo, às minhas razões para o continuar a defender. O que acontece é que, se se abandonar a exigência do referendo, dá-se uma completa caução ao caminho suicidário da UE, às crescentes tendências para, fugindo em frente, num aparente upgrade político que ninguém verdadeiramente deseja, estragar o que ainda sobrava de atitudes e medidas racionais na construção europeia, que também as houve. Não é um ajuste com a História é um ajuste contra as más políticas do presente.

É verdade que um referendo tem todos os riscos, em particular quando não se faz parte dos entusiastas da democracia "directa", o que é o meu caso. Não valorizo nem mitifico o referendo de per se, em detrimento da ratificação parlamentar, mas considero que, nas circunstâncias do presente, o referendo tem virtualidades que nada mais garante e é a única forma de criar obstáculos a um caminho que me parece ser uma corrida para um desastre. Ninguém pode negar que o "não" francês e holandês deram uma lição ao iluminismo europeu que nada mais poderia dar. É verdade que obrigou a levar a engenharia política para dentro dos salões, a escondê-la e a torná-la ainda mais dolosa. Mas fragilizou-a muito significativamente e isso foi positivo.


Há o risco do "sim" quase inevitável, apresentado como caução definitiva e eterna, a aparente legitimação do "pensamento único" que ad secula seculorum justificará tudo o que se fez e faz em nome da Europa. Um referendo com um "sim" esmagador acabará por garantir que os governantes nunca mais estarão dispostos a aceitar qualquer limitação ao seu direito de decidirem de forma iluminista sobre a Europa. E é plausível, quase inevitável, que seja esse o resultado em Portugal, dado o modo como a Europa representa uma forma de nos acomodarmos com um crescimento assistido com o dinheiro dos contribuintes alemães, uma facilidade de vida medíocre mas real, uma moderação exógena para os nossos maus costumes endógenos, tudo isso que brilha nas estrelinhas dos cartazes dos fundos. No referendo tudo se arregimentará à volta do "sim", Presidente da República, primeiro-ministro, Menezes e Portas, PSD, PP, PS, empresários, autarcas, Igreja, maçonaria, jornais e jornalistas, jornais, rádios e televisões, todo o mundo "sensato", e acima de tudo a enorme máquina de propaganda que já está instalada pela burocracia europeia.

A reivindicação do referendo é a única maneira de pegar nas poucas pontas de fio que sobram para um debate sobre a Europa, pobre, inquinado, desigual, ambíguo que seja, mas mesmo assim o único possível. O referendo dá um empowerment às pessoas comuns que nada mais dará, e esse "poder" é o único que as pode interessar pelas questões europeias, que as pode levar a prestar-lhes alguma atenção. Pedem-lhe o voto no meio da indiferença geral, mas mesmo assim são interpeladas. Muitos não farão nada, continuarão indiferentes, outros farão. Haverá mil razões impuras para o fazer, até porque o referendo está por excelência cheio de razões impuras, mas será que essas razões não têm a ver com a Europa? O argumento dos que dizem que os referendos europeus tendem a concentrar razões de insatisfação contra os governos que não têm nada a ver com a Europa, para mim não colhe. Os 200.000 manifestantes levados pela CGTP e pelo PCP estão a pronunciar-se sobre a Europa à sua maneira. Os que votariam contra Sócrates por causa do centro de saúde estão a pronunciar-se sobre a Europa, porque o aperto para o controlo do défice é uma política "europeia". Hoje quase tudo na governação tem a ver com a Europa, por isso, se se votar por razões impuras de política interna, também estamos a votar no modelo de uma política que é moldada por decisões europeias. Ninguém tem ilusões, a não ser os europeístas extremos, de que existe ou é possível existir uma "consciência europeia". Mas acredito, com a fé dos agnósticos, que talvez seja possível melhorar a "consciência" dos portugueses face à Europa e que isso é melhor que nada. Sem referendo é que é mesmo nada, estamos condenados à impotência cívica.

(No Público de 27 de Outubro de 2007)

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