ABRUPTO

22.7.07


O PSD E A CRISE DOS PARTIDOS NA DEMOCRACIA PORTUGUESA (1)

Os problemas do PSD são estruturais, como aliás os do PS, mas revelam-se pela conjuntura mais nitidamente do que os do PS, porque o PSD está na oposição e na oposição pobre, sem grandes expectativas nem esperanças. Estivesse ele no poder e pareceria pujante, como parece o PS. Parece, mas não seria, porque provavelmente estaria tão morto como o PS hoje está.
Na oposição pobre tudo se revela, a fragmentação sectária no aparelho, o afastamento das elites, a fuga de personalidades para o lado do poder socialista, o cansaço das "bases", a competição quase mortal pelos fragmentos de poder que sobram (o grupo parlamentar para começar), a sensação de inutilidade, irrelevância e impotência. Antes de se andar no jogo das personalidades em cima e das "espingardas" em baixo, a crise de direcção é propícia, para se discutir esses factores estruturais e os momentos conjunturais que a revelam. E, se não é, deveria ser.

Esses factores estruturais compreendem três processos destrutivos de diferente amplitude, mas todos contribuindo para a crise de partidos como o PSD e o PS, embora com formas e tempos diferentes. O primeiro desses processos é comum a todas as democracias modernas e consiste na erosão dos mecanismos representativos e de mediação sem os quais não é possível a democracia. Essa erosão, que atinge parlamentos, partidos, sindicatos, escolas, etc., tem a ver com o duplo processo de acesso das grandes massas aos consumos materiais e "espirituais", logo ao exercício de poder em áreas onde nunca tinham tido papel, e a subsequente pulsão para a demagogia que as novas tecnologias potenciam. As democracias estão a tornar-se demagogias e, num mundo "participativo", "interactivo", em "tempo real" e com votações instantâneas na Rede ou por telefone, as instituições de mediação não são necessárias, nem nada que "limite" o povo, como a lei. A lei é o "povo" que a faz a cada momento. Nem parlamentos, nem partidos, nem o controlo dos "pares" para os artigos da Wikipédia, mas sim tudo em directo, sem edição (como os blogues), aberto ao "povo" (como as caixas de comentários sem moderação ou o Fórum da TSF), apenas o pão garantido pelo Estado e acima de tudo entretenimento, circo, felicidade embalada. Que sentido tem votar, dar poder a alguém, se "nós" o podemos exercer "em directo"?

O segundo processo já é especificamente português e tem a ver com o facto de os partidos democráticos, o PS, o PSD e o CDS, terem sido "auxiliados" pelos construtores do nosso Estado democrático para crescerem depressa e se consolidarem, para contrariar o poder do único partido verdadeiramente existente à data do 25 de Abril, o PCP. Por estas razões, os partidos políticos receberam constitucionalmente uma hegemonia completa do espaço público, detendo o monopólio quase perfeito da participação eleitoral, com excepção das eleições presidenciais. Só com muita dificuldade aceitaram a concorrência de independentes nas eleições autárquicas e continuam a manter o monopólio nas eleições para deputados, o último reduto do poder interno das direcções partidárias. O crescente papel dos independentes, mesmo imperfeitos, mostra que esta hegemonia está a rebentar pelas costuras.

O terceiro processo é o resultado da conjugação dos dois anteriores com a nossa história política pós-25 de Abril, que envolve a dinâmica política entre o PSD e o PS, e, em menor grau, mas também presente, entre o PSD e o CDS e agora o PP. Esta dinâmica política tem duas componentes, uma de carácter político e ideológico, e outra do modus operandi e do modus vivendi. Deixarei, para já, de lado as questões políticas e ideológicas, para olhar para os factores de crise propriamente partidários.

Para começar, existe a ideia de que se pode em democracia, ou melhor, se deve, prescindir dos partidos ou pelo menos minimizá-los, quando há coisas sérias para fazer, como seja governar. Nessa altura, convém pôr os partidos a milhas, e essa foi uma doutrina que com Ramalho Eanes na presidência e Cavaco Silva como primeiro-ministro ganhou foros de prática. É uma ideia que em Portugal tem um pano de fundo muito poderoso, o esconjurar da "porca da política", numa tradição que já vem do século XIX e que ganhou fortes raízes na mentalidade popular e das elites com os 48 anos de política de "união nacional", baseada na conjunção do autoritarismo com o ódio ao conflito. Este pano de fundo encontrou expressão nalgumas ideias do PREC, mostrando a mesma rejeição do confronto democrático e dos partidos a favor de unanimismos salvíficos num MFA suprapartidário em que se votava em branco. Nos dias de hoje manifesta-se em concepções tecnocráticas do exercício do poder, que se apresentam como resultado da eficácia empresarial e do saber técnico acima da "partidarite" e das "divisões entre portugueses", a favor dos "consensos", com predominância da linguagem yuppie dos gestores modernos e da imprensa económica.

Neste contexto, várias coisas começaram a correr mal no PSD desde que no tempo de Cavaco Silva se começou a acentuar a separação entre o exercício do Governo, assente em núcleos políticos muito restritos de confiança pessoal, deixando o partido para a gestão corrente e as tarefas menores. Esse divórcio agravou-se pela falta de fiabilidade dos órgãos partidários para actuarem com a reserva e a discrição que o processo de decisão implicava. Sob pressão da comunicação social, num momento de grande agressividade antigovernamental e de competição entre os jornalistas entre si por oportunidades de carreira, prestígio e salário na altura muito razoáveis, os órgãos partidários, conselhos nacionais, comissões políticas começaram a transformar-se em "fontes com pernas". Nada se podia decidir que não aparecesse antes, durante e depois nos jornais, interpretado pela "fonte" e pelos jornalistas em função das suas simpatias pessoais e políticas. A qualidade decisória e de aconselhamento desses órgãos, que necessita sempre de uma certa reserva e de um tempo diferido de divulgação, foi-se degradando e correlativamente aumentaram os órgãos informais, que não respondiam a não ser na base da confiança pessoal. Esses "núcleos duros", task forces, começaram a proliferar ao lado dos órgãos formais, afastando a política e as decisões políticas de órgãos eleitos. Essa evolução para a concentração no Governo e em órgãos informais no tempo de Cavaco Silva foi patente, aliás, nas escolhas de secretários-gerais para o partido, em que depois de uma direcção política (Dias Loureiro) se caminhou para uma gestão técnica (Falcão e Cunha). Acentuou-se assim a divisão entre os que controlavam as decisões políticas e se acantonavam no Governo e os que eram barrados desse controlo e eram deixados apenas à gestão corrente dos seus interesses, a quem foi deixado o partido.

Não foi um processo pacífico, porque o PSD estava então muito mais vivo do que o PS está hoje no poder, mas levou rapidamente à ascensão e rigidificação de uma burocracia partidária oligárquica que se instalou nos seus pequenos poderes nas secções, fechando o partido a qualquer competição, acentuou a tendência para os sindicatos de voto, instalou a JSD e os TSD como "partidos paralelos" com quotas de poder interno, instituiu "carreiras" que viviam apenas e só do controlo interno. O partido começou a ter mais "vida interna" do que influência externa e a perder a relação com os sectores mais dinâmicos da sociedade, os self-made man que tinham sido a causa do seu sucesso no passado e que agora não queriam ter nada a ver com o PSD.
Estas tensões estavam patentes na conflitualidade entre "loureiristas" e "nogueiristas", a origem próxima de muitas fracturas dos dias de hoje.

(Continua)

(No Público de 21 de Julho de 2007)

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