(...) junto mando-lhe um par de links relacionados com este assunto.
O primeiro é acerca do problema da “fiabilidade” da informação, situação admitida já em 2005 por um dos criadores da Wikipedia, Jimmy Wales (Larry Sanger, outro dos criadores abandonou o projecto e é hoje bastante crítico do mesmo, estando a planear uma alternativa menos… digamos… “aberta”). De facto em varias universidades americanas e europeias trabalhos com citações á Wikipedia não são mais aceites.
O segundo poderia ser mais uma anedota que algo para levar a sério se não reflectisse o poder conservador nos Estados Unidos que levou Bush ao poder e á Guerra no Iraque. Trata-se da Conservapedia (“A conservative encyclopedia you can trust”, na palavra dos seus promotores) que não é mais que uma alternativa conservadora á popular Wikipedia e onde são divulgadas com grande destaque, entre outras, as teorias Creacionistas tão em voga entre os conservadores (faça uma busca por “evolution” e verá o que estes senhores estão continuam a impingir aos seus próprios filhos neste mesmo milénio).
A Wikipedia é uma boa ideia e seria um excelente contributo para o conhecimento humano se não esbarrasse nas convicções e agendas próprias de cada um. Ao dar a possibilidade de cada um de nós poder editar qualquer assunto, sem grande controlo, transformou-se uma boa ferramenta numa mera curiosidade a consultar com extrema precaução e cepticismo.
(João Mourato)
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Li o seu artigo sobre a Wikipédia (A POLÍTICA PORTUGUESA NA WIKIPEDIA, Versão no Abrupto, 18 de Março de 2007.) e, no geral, tem razão. A Wikipédia (e a escrita em língua portuguesa em particular) está pejada de erros, de informações tendenciosas, e tem servido como meio de doutrinação política, religiosa ou outra. Contudo, como defensor da Wikipédia, devo dizer que existe um erro na sua posição contra a Wikipédia. A Wikipédia não pode servir, nem serve, como fonte bibliográfica. A Wikipédia é um centro de negociação da verdade. É legítimo que não concorde com a existência de tal centro de negociação. Aconselhava-o a ler este texto: que explica bem o que pretendo dizer com "centro de negociação da verdade". Quanto à qualidade da Wikipédia em português (em comparação com a Wikipédia em inglês) deriva apenas da quantidade de contribuidores no projecto em Língua Portuguesa, que é mínima. A maioria prefere contribuir directamente na Wikipédia em inglês onde se juntam a criticar os pobres acéfalos que persistem em escrever em Língua Portuguesa, descrevendo a comunidade Wikipedista lusófona como uma máfia ideologicamente mal orientada. Ora, se tal máfia existe, é porque a deixaram instalar-se. É como alguém que não vota a criticar a escolha do governo em funções.
Se a qualidade da Wikipédia em língua portuguesa é miserável (e qualquer contribuidor sério da Wikipédia em português concorda com essa sua afirmação), a verdade é que isso acontece, também, porque não temos a tradição do confronto de ideias e da argumentação. A história da argumentação, nas comunidades lusófonas, consiste apenas num rol de monólogos surdos. Não se lê o que o Outro escreve, mas falamos como se tivéssemos lido. E é devido a esta característica histórica dos povos lusófonos, bem patente no seu atavismo académico (basta falar com os "brains" que exportamos para os EUA para confirmarmos o que estou a dizer) que precisamos MUITO da Wikipédia em português. Com muitos artigos maus, desconexos, errados, tendenciosos e panfletários. Porque todos estes maus artigos são, também, um convite para a leitura crítica. O José Pacheco Pereira leu alguns e apontou os seus graves defeitos. Muito bem. Já participou, desta maneira, na construção da Wikipédia. Muito lentamente (e terá mesmo de ser lentamente, que o número de contribuidores da Wiki.pt é, como disse, mínimo), haverá quem pegue nestas críticas e se lance a melhorar os artigos, a expurgar o que está errado, a tentar dar equilíbrio ao que está desequilibrado. O simples facto de verificarmos que artigos essenciais estão subdesenvolvidos, enquanto que artigos de figuras secundárias merecem maior detalhe é também um convite à reflexão e ao trabalho nesses artigos prioritários. Mas, mesmo quando, no futuro, o artigo sobre António Guterres estiver aceitável, esse artigo da Wikipédia poderá servir como fonte bibliográfica? Claro que não!!! E julgar que os entusiastas da Wikipédia pretendem isso é absurdo! O grande valor educativo da Wikipédia está na sua construção, no debate, na negociação da verdade. Por mais obscena que lhe pareça essa expressão ("negociação da verdade"), esse é o verdadeiro valor da Wikipédia. Se o José Pacheco Pereira não quer contribuir para a Wikipédia (e, como diz, não tem essa obrigação) pode, contudo, contribuir para o processo de discussão. Aliás, já o fez ao escrever a sua crónica sobre a Wikipédia. E pode, ainda, aprender muito se, em vez de ler o artigo final, usar o histórico do artigo e comparar as várias versões por que passou o artigo ou se espreitar a discussão do mesmo. Claro que, na maioria dos casos encontrará afirmações absurdas, pouco fundamentadas, mal escritas, mal coordenadas, tendenciosas... Mas, meu caro: a humanidade é assim mesmo. E os intelectuais instalados no meio editorial tradicional não participam na construção da Wikipédia. Por que razão? Porque, além de não serem pagos para isso, não ganham, intelectualmente, nada com o exercício porque já têm opositores ao seu nível, dispostos a negociarem a verdade científica na redoma esterilizada das academias. A Wikipédia é o local onde a base intelectualóide ou assumidamente não-intelectual imita esse processo de negociação. O resultado é mau? Não, não é. Porque não é definitivo. E o texto final, o artigo final, não deverá, nunca, ser o da Wikipédia. Os conteúdos da Wikipédia estão publicados em GFDL. O que significa que qualquer perito bem intencionado os pode ler, rever à sua maneira, e publicá-los, numa forma definitiva (ou, pelo menos, não vandalizável) onde bem entender, desde que mantenha o texto em GFDL. E pode, agora, perguntar: e por que razão é que um perito quererá sujar as mãos com os artigos da Wikipédia??? Simples. Porque no meio de tantos artigos maus, há (poucos, porque os contribuidores também são poucos) artigos que seriam muito bons e que assim seriam classificados até pelo José Pacheco Pereira se não estivessem publicados na Wikipédia e tivessem, em baixo, a assinatura de um cientista conceituado. E se não há... há-de chegar a altura em que haverá. Até lá, há muita coisa a fazer. Muito artigo a desenvolver, muita propaganda e contra-propaganda a eliminar, muita informação a verificar. Muita coisa a aprender. O facto de já termos artigos que são citados pelo Pacheco Pereira no Público já é um bom indício. Já temos maus artigos (como muitos que se espalham nos blogs e noutros sítios da Internet). Só falta torná-los bons - ou, pelo menos, aceitáveis.
Continuo a seguir com interesse a sua discussão sobre a Wikipedia. Gostava de lhe poder transmitir um caso prático que mostra o poder da Wikipedia no desmantelar do que hoje dá poder às pessoas: a posse da informação.
Em 2006, trabalhei num hospital do SNS. Esses hospitais são pagos por acto médico em que no internamento se aplica o conceito dos Grupos de Diagnóstico Homogéneos (GDH). Basicamente neste sistema, os doentes são agrupados por patologias e por procedimentos que se consideram equivalentes em termos de consumo de recursos. O sistema de obtenção de um GDH de um determinado internamento é um pouco complexo de calcular e incluí variáveis como o tempo de internamento e os dignósticos e procedimentos realizados e codificados pelo ICD-9 que é uma norma internacional de classificação de doenças. Em Portugal, existem pessoas altamente qualificados em GDH nomedamente no IGIF que é um organismo do Ministério da Saúde. Era sempre complicado pedir informações mais técnicas sobre GDH ao IGIF. A informação era sempre muito agregada e com pouco possibilidade de ser auditada pelo hospital.
A Wikipedia em língua inglesa ajudou o hospital onde trabalhava a perceber melhor o funcionamento dos GDH. Por exemplo, basta consultar uma determinada patologia em inglês que aparece lá o GDH correspondente (CID 9 ou ICD 9 em português). Veja por exemplo a entrada sobre a septicemia.
Este foi o ponto de partida para a construção de um sistema de validação da informação recebida pelo IGIF. E tudo começou na Wikipedia e o hospital ficou mais autónomo do IGIF.