ABRUPTO

11.11.06


TESTEMUNHOS E OPINIÕES DOS LEITORES DO ABRUPTO SOBRE AS GREVES 5



Parece que a conquista do poder, ao mesmo tempo que tende a apagar as ideologias, vai compensando isso com uma maior personalização no exercício do político, tanto maior quanto mais forte for o peso da votação. O efeito, pelo menos em Portugal, vem sendo o de revelar os «instintos genéticos» (no sentido familiar e social) dos líderes por tal «carga genética» se transferir quase directamente para a sua acção política. Assim como a origem social do Prof. Cavaco Silva o fez valorizar o «self made man», o Eng.º António Guterres acabou bloqueado pelo seu piedoso berço católico, e agora o Eng.º José Sócrates não disfarça que vem de uma família cujo atributo essencial são «as posses» (ou simplesmente a riqueza). A felicidade e auto-elogio do Primeiro Ministro pelas suas «reformas» talvez se devam ao facto de no seu subconsciente ter atingido o nirvana dos «detentores do capital e/ou dos meios de produção» (sei que recorro ao marxismo-leninismo primário, do qual nunca padeci, mas os tempos que correm fazem milagres) ao conseguir colocar os pobres e as classes médias uns contra os outros. É a subversão completa da luta de classes, crença que sustenta o estado social, mesmo que estivesse (e cada vez mais) apenas subjacente. A versão que se vai tornar para nós recorrente nos próximos anos é a da oposição entre funcionários públicos e funcionários do sector privado. Portugal entrou assim de modo abrupto no problema social do século XXI. Há, por outro lado, sintomas interessantes na modelação dos discursos públicos (basta ler o seu blog a propósito das greves): parece que os funcionários públicos não pagam impostos e quando vão às repartições ou ao hospital, quem os atende reconhece-os instintivamente e confere-lhes tratamento privilegiado, como se houvesse uma «sociedade dos públicos» e outra «sociedade dos privados». Mas as ideologias sempre foram assim, pois simplificam, às vezes de modo radical, a complexidade do real. O que o mundo mudou. Incrível é que isto venha da «esquerda» que assim enterra a luta de classes na versão «vertical» marxista e inaugura outra «horizontal» que permite aos que podem «tirar o corpo de fora». Resistirão as utopias da coesão social e da igualdade? Vivem-se tempos interessantes.

(Gabriel Mithá Ribeiro)

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Já que a conversa parece estar a desviar-se para a justificação das greves em geral, ocorre-me recordar as teorias recentes do ideólogo João Bernardo sobre como o modelo actual de greve é uma forma de luta completamente anacrónica. Segundo ele, a greve vista como paralisação de actividades e ausência do local de trabalho é uma reminiscência da velha greve operária da grande fábrica, em que essa era com efeito a única forma de parar a produção, por natureza organizada e ultra-disciplinada. Os consumidores não davam por nada e só o capitalista era penalizado.

Na nova economia de serviços, tal tipo de greve só prejudicaria os consumidores, que se viram contra os grevistas. Por conseguinte, defende ele, a forma de luta a adoptar deverá ser a continuação da produção dos serviços, eventualmente acompanhada de propaganda junto dos clienes/consumidores, de forma a manter o seu apoio, mas... não cobrando pelos mesmos! Assim, de facto, só o patrão seria prejudicado!

Baseia-se João Bernardo na experiência da greve da Carris de 1969, que decorreu dessa maneira (prestação do serviço mas ausência de cobrança), e onde por sinal a organização marxista-leninista de que Bernardo era dirigente teve algum papel, mas claro que a extrapolação directa não é em geral possível por que os condutores da Carris são dos raros trabalhadores que são simultaneamente cobradores. No entanto, Bernardo sugere adaptações: por exemplo, que os professores estejam nas escolas mas, em vez de darem o programa lectivo definido pelo Ministério, dêm programas alternativos...

Acho imensa graça a estas ideias “criativas” de João Bernardo, mas é claro que são pueris e na prática tão contra a própria greve como o patronato. As escolas, por exemplo, e como diz Medina Carreira, são entre nós e antes de mais uns locais onde a maioria dos alunos e professores tem de estar fechada até ao fim da tarde, e pouco importa à maioria dos pais que lá se ensine ou não, desde que desempenhem o seu papel de depositárias dos filhos, ou seja, de creches...
No entanto não deixa de ser verdade, penso eu, que a greve como se fazia antigamente nas fábricas vira hoje o público consumidor contra os grevistas da economia de serviços e pouco prejudica os patrões. No Estado, por exemplo, até ajudam a reduzir o défice público...

(Pinto de Sá)

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Falando da função pública, parece estar encontrado o bode espiatório para o estado da nação... Todo bom português anda agora, mais do que nunca, com a mira no preguiçoso e sugador de recursos comuns que mais não faz que nadar em regalias e previlégios! A ignorancia não é desculpa para tudo, ou melhor a ignorancia não é desculpa (sem mais). Sou funcionário do estado e (surpresa) contribuo mais para o erário público que os funcionários com categoria equivalente no sector privado (em percentagem e atendendo ao facto de que não me chega nada por baixo da mesa). Por vezes dou comigo a imaginar se todos esses malandros saissem da função pública e fossem trabalhar para o sector privado. Se, na minha área (a Saúde), tudo entrasse na alçada do poder privado... Podem ter algumas certezas: Eu trabalharia o mesmo; receberia mais ao fim do mês; provavelmente descontaria menos!; com a veemente convicção de que o português comum (o do salário minimo e pouco mais) teriam muito menos hipóteses de serem servidos por um serviço de qualidade e principalmente em situação de igalidade, repito igualidade de tratamento. Acabem lá com o funcionalismo público numa prespectiva redutora, mandem todos os serviços para o sector privado... Por mim tudo bem! Posso pagar um seguro de Saúde razoável! E o resto dos portugues? Quando ouvirem: não fazemos a sua cirurgia ou o seu tratamento porque o seguro não cobre e o estado também não, vá morrer longe! Falo com conhecimento de causa tanto do sector público como do sector privado.

Já agora digam lá, quais as regalias do funcionário público, que ainda não as vi...

(Filipe Martins)

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(...) Falava eu com um catedrático de Coimbra sobre a greve geral última, quando fico a saber que Carvalho da Silva, o sindicalista, estava a prepara a tese de Mestrado em Sociologia. Não sei se a propósito, ou se seria a tese em si que versava sobre o tema, o Professor abordou a teoria da possibilidade de estarem as greves previstas para acabarem. Isto é que se estaria a pensar em encontrar formas de luta ( igualmente de pressão, penso) para encontra arternativas, uma vez cito" as greves são ideias do Séc XIX e é preciso renovar as formas de reivindicar. Estará a greve fora de moda?

(José João Canavilhas)

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SOBRE OS FUNDAMENTOS DA GREVE E DOS PRIVILEGIADOS, julgo ser necessário descer ao caso concreto, até para as pessoas melhor perceberem do que estamos a falar.

Considere-se…

Um curricula:

Curso do secundário em humanidades com média final de 18 valores. Provas de entrada na Universidade com 19,1 e 18,5 valores (História e Filosofia, respectivamente). Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra aos 22 anos, com 14 valores. Pós-graduado em Direito das Empresas pela mesma Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Curso de estágio pela Ordem dos Advogados com média de 16 valores. Titular do Curso de Estudos Avançados em Gestão Pública (pós-graduação), pelo Instituto Nacional de Administração (num total de 2000 pessoas que concorreram, ficou em 3.º lugar), o qual finalizou com 16 valores, curso esse que lhe possibilitou entrar na função pública. Mestre em Gestão Pública, pela Universidade de Aveiro, com distinção. Mestrando no Mestrado em Direito Público/Administrativo pela Universidade Católica de Lisboa.

Um desempenho profissional, na função pública:

Obteve a classificação de Muito Bom e de Excelente com o novo sistema de avaliação (SIADAP), nos últimos 4 anos, num organismo com mais de 2000 funcionários – note-se que nos termos do SIADAP, apenas 5% do total dos funcionários pode ter excelente…

Contributo para o interesse público/cidadão do meu desempenho profissional:

No âmbito de diversos projectos de simplificação e de reestruturação regulamentar, procedimental e organizacional por mim apresentados e superiormente aprovados (antes mesmo do SIMPLEX), foram alcançados os seguintes resultados: diminuição de 3 anos para 8 meses do tempo total de um determinado licenciamento; diminuição de 12 meses para menos de 1 mês de mais de 9 processos administrativos internos de resposta ao cidadão; redução em mais de 50 % da totalidade das reclamações dos utentes/cidadãos; ..etc, etc. (com o SIMPLEX 2006 (e também do próximo de 2007), no âmbito de dois projectos/planos por mim apresentados, o organismo esteve representado em mais de 10% da totalidade das medidas, tendo concretizado 95% das mesmas).

Retribuição:

Salário? 1100 euros líquidos.

Descontos? 300 euros de IRS todos os meses (retenção na fonte, porque no final do ano fiscal acabo sempre por pagar mais +/- 700 euros, o que dá à volta de 4000 euros anuais) + 200 euros referentes à Caixa Geral de Aposentações e à ADSE.

QUESTÃO: SOU UM PRIVILEGIADO?

Antes de ser funcionário público, exercia a advocacia: em termos líquidos, anuais e médios, auferia cerca de 3 vezes mais do que actualmente, e pagava sensivelmente menos de metade dos actuais descontos. Antes de ser advogado, tive também outras experiências profissionais, onde mais de metade do meu salário era por mim recebido fora da minha folha de vencimentos (o mesmo acontecia com os demais funcionários e colaboradores).

Em resposta à pergunta e para quem considere que sim, sou um privilegiado, pois bem, eu também…, tanto assim que estou neste momento à espera de autorização superior para sair, o que espero que aconteça até ao final do presente ano (apesar de saber que o Secretário de Estado leva +/- 2 meses para decidir…).

Algumas precisões:

1. Na Administração Pública 47,7% dos trabalhadores têm um nível de escolaridade superior (v.g. Médicos, Enfermeiros, Juízes, Professores), enquanto no sector privado a percentagem de trabalhadores com formação superior é inferior a 13,7%;

2. Em comparação (feita por profissões/qualificações), as remunerações praticadas na Administração Pública são significativamente inferiores às remunerações praticadas no sector privado. Tomando como base tudo aquilo que o trabalhador recebe, a diferença para menos na Administração Pública, quando comparado com o pago no sector privado, varia da seguinte forma por profissões: Grupo "Técnico": entre -188% e -156%; Grupo "Técnico profissional": entre -75% e -46%;

3. O total de descontos em 2007 na FP vai ser 11,5%, enquanto no privado vai ser de 11%;

4. Mais de 33% do total de trabalhadores entraram para a Função Pública nos últimos 15 anos através dos Gabinetes Ministeriais, Cargos de Direcção e Agências ou Unidades de Missão (todos de escolha política), primeiramente através de contratos de prestação de serviços e de tarefa (v.g. avenças) e sequentemente através da sua integração dos quadros por via legislativa ou através de concursos públicos orientados.


Para quem gostar de aprofundar estes temas para além do banal, do barulho e da “propaganda”, sugere-se, entre muitos, os seguintes:

- Alves, A. e Moreira, J. M., (2004), O que é a Escolha Pública? Para uma análise económica da política, PRINCIPIA, Publicações Universitárias e Científicas, Cascais.

- Bauby, P., (1998), Reconstruire l’Action publique. Services publics, au service de qui?, Syros, Paris.

- Bonwitt, B., (1989), “Reforme de l’administration publique: des missions aux objectives”, Revue Internationale des Sciences Administratives, vol. 55, n.º 2, pp. 255-275.

- Bjorkman, J. M., (2003), Health Sector Reform – Measures, Meddles and Mires, Institute of Social Studies, The Hague, The Netherlands.

- Boyne, G., Jenkins, G. e Poole, M. (1999), “Human resource management in the public and private sectors: an empirical comparison”, Public Administration, vol. 77, n.º 2, Summer, pp. 407-420.

- Cabral, M. V., Silva, P. A. e Mendes, H., (2002), Saúde e Doença em Portugal, Imprensa de Ciências Sociais, Viseu.

- Campbell, D. e Stanley, J., (1963), Experimental and Quasi-experimental Designs for Research, Houghton Mifflin Company, USA, Boston.

- Canotilho, J. J. e Moreira, V. (1985), Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra.

- Corte-Real, I., (1995), O Livro de Modernização Administrativa: 1986-1995, Lisboa, Secretariado de Estado de Modernização Administrativa.

- Denhardt, V. e Denhardt, R., (2003), The New Public Service: serving, not steering, M. E. Sharpe, New York.

- Egeberg, M., (2003), “How bureaucratic structure matters: an organizational perspective”, in B. G. Peters e J. Pierre (eds.), Handbook of Public Administration, Sage Publications, London.

- Harrison, M., (2002), “Can competition transform public organization? European attempts to revitalize hospitals trough market mechanisms”, in E. Vigoda (ed.), Public Administration, An Interdisciplinary Critical Analysis, Marcel Dekker, Inc., New York.

- Hayek, F., (1977), O Caminho para a Servidão, Teoremas, Lisboa.

- Heeks, R., (2002), “Reinventing government in the information age”, in R. Heeks (ed.), Reinventing government in the information age, International practice in IT-enabled public sector reform, Routledge, London.

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(Daniel de Sousa)

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