ABRUPTO

3.11.06


O INVERNO DO NOSSO DESCONTENTAMENTO



As pessoas têm os estados de alma associados ao tempo. Começa a entrar-se no Inverno, nem sentem o Outono. Vem as brumas e as chuvas e entra-lhes a morrinha da nossa Rosalia pela pele dentro. Começa a chover-lhes na alma e a ficarem tristes e deprimidas. Os psiquiatras recebem novos clientes. Os divórcios começam a gerar-se nas zangas contínuas. A casa conjugal parece um fardo infinito, com cada parede a exclamar: "Esta não é a vida que sonhavas." Namoros acabam lavados em lágrimas e recriminações. Nos quartos minúsculos dos subúrbios muitos adolescentes escrevem diários e poemas e abrem blogues. O telemóvel sobrecarrega-se de chamadas só para falar, por falar. Tudo parece mais penoso, tudo parece mais pesado, a existência um fardo.


Estas nuvens pertencem a um quadro de Courbet intitulado Eternidade, uma das mais dramáticas ilustrações da relação entre o tempo e uma ideia abstracta, ou um sentimento. O mau tempo, as nuvens ameaçadoras, são a eternidade. O fragmento dela que vivemos é como este céu, este mar, estas rochas.
Cá fora o mundo exterior encarrega-se de atirar ainda mais cinza para as almas perdidas no Inverno. Chega o Inverno, nas cidades chega o inferno. As ruas tornam-se intransitáveis, os transportes um martírio. Os carros nas ruas triplicam como por milagre e tudo fica bloqueado. Trajectos de um quarto de hora demoram uma hora. Molhada, encharcada, cansada. Levar os filhos à escola é perder as horas certas para entrar no emprego.


Ninguém melhor que Hopper...

Comer de pé, num qualquer café transformado em restaurante de almoços rápidos, é participar numa colisão de corpos informes e desconfortados, guarda-chuvas a pingar, competindo por uns centímetros de balcão pouco limpo. Nada aquece, nada está aquecido. Aquela sopa não se pode comer, não sei porque venho sempre aqui. Sei, sei, é mais perto, é mais barato.

A imensa humidade que se espalha por todo o lado entra em tudo. Mesmo quando se olha pelo vidro da janela, quando se tem a sorte de ter uma janela por perto, tudo está tão completamente cinzento, castanho, pardo que não há cor que sobreviva. O céu está da cor da televisão, dizia Gibson. Está, da cor da estática, do ruído. Como não temos hábito de usar as flores para colorir os espaços, o néon brilha com crueza. Tudo se habita mal quando todos habitam mal em si próprios.

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The sky above the port was the color of television, tuned to a dead channel.

Depois há menos dinheiro, cada vez menos dinheiro. Em contrapartida há cada vez mais dívidas difíceis, os cartões de crédito mostram a sua face rapace, por detrás da enganadora facilidade de comprar sem pagar dinheiro. Falta dinheiro para comprar os livros para a escola, centenas de euros se se fizesse o que a "escola" pedia. Falta dinheiro para pagar esta análise, demasiado cara. Falta dinheiro para o aparelho dos dentes. Os telemóveis do pai, da mãe, do filho adolescente, da filha no 3.º ano da escolaridade, custam cada vez mais, mas como é que se pode viver sem eles?
Água, luz, TV Cabo com Sport TV, o carro, as compras no supermercado, as viagens, as prestações da casa, da mobília tão gentilmente empurrada pelo crédito ao consumo, das férias, sobem sem parar. Já fui uma vez ao Corte Inglés, agora vou ao Modelo, amanhã irei ao Lidl. Felizmente que os jornais gratuitos já não obrigam a comprar outros jornais que não os desportivos. E há as revistas, a Nova Gente, a Lux, que também são tão caras como indispensáveis. Como é que eu saberia com quem "anda" a Elsa Raposo sem ler a literatura especializada? O rapaz vem da escola a querer só roupa de marca, embora se contente com roupa de marca comprada na feira, aos ciganos, desde que tenha a etiqueta. Vai querer um computador só para ele, para "estudar". Será que ele se droga? Parece tão cansado, brusco...


Este cinzento é o fundo do quadro O Inverno de David Teniers, o Jovem, pintado por volta de 1644, quatro anos depois da Restauração, reinava Sua Majestade D. João IV. As cores do Inverno não mudam.
Insegurança. Mais insegurança, medo, preocupações. Medo de ir à rua à noite, medo de ir ao Multibanco mesmo quando preciso, medo que me risquem o carro, que me roubem o rádio, já que a antena eu levo para casa todas as noites. Atarracho, desatarracho. A culpa é de quem trouxe os pretos para aqui. Não respeitam nada. As fábricas têxteis fecham no Verão, ou melhor, não abrem no Outono. Mas como será na empresa, no escritório, onde o negócio anda mal? Vou ser despedido? E na repartição será que a minha mulher vai para o quadro dos excedentes? O chefe vai ter que nos classificar, mas ele foi lá posto pelo PS (ou pelo PSD) e vai de certeza escolher os da "cor".

Os professores entram na escola desinteressados e sentindo-se humilhados. Como é que pode ser doutra maneira com "esta" ministra? Pois vou ter que passar horas a "substituir" a minha colega que faltou? Está bem, como não sou obrigado a ensinar nada, estas horas não podem ser "lectivas", ponho-os a jogar e a fazer puzzles ou simplesmente quietos. Será que posso pôr "aquele" rufia na rua? Não posso, tenho medo. Medo que me fure os pneus, medo que me agrida com o seu gang. Depois a quem me queixo? Ninguém faz nada. Ele ficará sempre aqui, a ameaçar-me.

Medo de perder o pouco que tenho, medo que o pouco que tenho não me chegue. Medo que se perceba que não tenho capacidade para fazer o que estou a fazer. Medo de ser avaliado com justiça. Medo de ser injustamente avaliado para cumprir qualquer quota, ou fazer qualquer poupança ou para que o "chefe" ajuste as suas contas. Cada ano ganho menos. Nunca fui a uma manifestação, não gosto dos comunistas, sempre fui PS (ou PSD), mas este ano vou. E se não vou à manifestação, porque não gosto dessas coisas, e tenho medo de me mostrar, faço greve. Com medo, mas faço.

"Eles", os políticos, não sabem nada disto, nem querem saber, repete-se no Norte nos cafés, no Sul nas pastelarias e snack-bars. Se houvesse um coro como nas tragédias gregas, ele sussurraria avisos para os de cima como o dos Idos de Março, avisaria que cá por baixo os ânimos exaltam-se ou as pessoas se cansam. Pior do que a exaltação, é a resignação.
Não vai ser fácil este Inverno. Já ninguém acredita em qualquer luz no fundo do túnel. Nem acredita, nem caminha para o fim do túnel. Tende a caminhar para o princípio, para trás, onde tem a falsa memória de que estava luz. Talvez na Primavera tudo melhore e sempre se podem fazer férias no Algarve outra vez. Corso, ricorso.

(No Público de 2 de Novembro de 2006)

*
Gostei da imagem do coro - assim os seus colegas politicos soubessem o que significa e fosse aos cafés ouvir o "povo anónimo".

Contudo, há factores de esperança. Eis um: este ano estou a dar aulas a dezenas de pessoas que entraram na Universidade por causa lei dos mais 23. E digo-lhe: a força daquela gente, é impressionante. Lutam que nem uns danados, para agarrarem uma oportunidade de se licenciarem. E de melhorarem a vida. Oxalá aguentem o Inverno. Eu vou ajudá-los. Na Primavera digo-lhe o que sucedeu.

(ET)

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(...) capta muito bem o Pathos urbano do Inverno. Fiquei só a perguntar-me se esses traços sao de facto conjunturais ou estruturais nos portugueses. Para mais, recordou-me um seu outro artigo, acerca do casal da margem sul, talvez nao por mero acaso.

Nao resisto a fazer somente uma sugestao. Imagine o que é uma pessoa atravessar esses dias de descontentamento e, usando o metro (Odivelas), como eu e muitos, se depara com um revisor. E por acaso nesse dia você até se tinha esquecido de trazer ou renovar o passe (e acontece). Resultado: multa. Digo-o simplesmente porque, andando de metro desde há 3 anos, nunca tinha visto um revisor até recentemente. Surgiram do nada. Parecem ter escolhido justamente estes dias sombrios para melhor deprimir as pessoas. Sao mais uma acha na fogueira que é avivada ao longo de um dia difícil. Sabe Deus onde é consumida.

(Pedro Oliveira)

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Traduz e expressa bem a realidade portuguesa, a nossa realidade. Aquela que os políticos e o povo querem ignorar. Aquela que alguns de nós – graças a Deus, ainda há alguns de nós – sabem existir e grassar cada vez mais.
Qualquer dia, já nem vale a pena escrever coisas destas. São tal incompreendidas ou, então, mal recebidas, que não vale a pena. A única luz que vejo é a do passado, a de que, em finais de 1800, também assim era, mutatis mutandis. Ler Eça ou As Farpas é perceber isso. Mas, confesso-lhe, não me consola.

(Rui Esperança)

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Estive a ler o seu "Inverno do nosso descontentamento" e embora seja um optimista, não posso deixar de concordar consigo. Portugal está-me a deixar cada vez mais pessimista. Tenho 36 anos e a vida puxou-me o tapete aos 25 quando me diagnosticaram esclerose múltipla.Fui entretanto estagiário, vendedor, responsável de zona, director de marketing em várias empresas. Agora sou pensionista.

Felizmente nunca fugi à segurança social (mesmo quando servia à mesa numa pizaria nos tempos de estudante) e hoje usufruo de 396 euros mensais. Felizmente sempre fui precavido e acho que o que o que investi me vai dar para viver. Felizmente tenho uns pais maravilhosos que me vão ajudando enquanto podem com as tarefas do dia a dia. Felizmente tenho amigos que têm estado sempre presentes.

Só penso é nos deficientes que não têm tanta sorte como eu: nos que ganham mais de 485 euros e vão começar a ter menos benefícios fiscais, nos que têm pais ou amigos que não os podem ajudar. Nos que não puderam juntar algum dinheiro.
Estes varredores de tostões, ao retirarem estas migalhas, esquecem-se de todas as outras despesas ligadas ao portador de uma deficiência. No meu caso, fisioterapia paga por mim, alguns medicamentos não comparticipados, deslocações que não podem ser feitas em transportes públicos...

Foi só um desabafo. E de alguém que tem sorte.

(miguel abreu)


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... mas se poderia supor-se alguma empatia pelos problemas das pessoas comuns, essa ideia parece dissolver-se na constatação de que nada do que relata o afecta a si. Aliás, como é que se pode deixar de ter estados de alma? Se Descartes errou, como António Damásio refere...

(S.)

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Da sua (...) crónica, que reflecte fielmente o espírito que prevalece transversalmente na sociedade portuguesa, uma palavra se destaca de todas as outras.: O Medo...esse medo de que fala é paralizante, tolhe a iniciativa, afecta a auto estima, debilita a dinâmica social...é um medo quase Kafkiano, endógeno quase tangível.

Portugal continua a ser na sua essência um país adiado, apesar dos mega bytes mediáticos do actual governo, anunciando "amanhãs que cantam", pondo em marcha uma espécie de "marcha cultural balofa" pela modernização tecnológica num país em que as telecomunicações são encaradas como um bem de luxo e como tal oneradas com a taxa máxima de IVA de 21 %. São estes sinais contraditórios entre politica económica "tecnologicamente pura" e política fiscal diametralmente oposta que colide com os objectivos estratégicos de desenvolvimento anunciados, que confundem o cidadão e descrebilizam o actual governo fazendo deste um agente do tal clima de medo e frustração.

(António Ruivo)

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