LER, ESCREVER, CONTAR, VER TELEVISÃO E PESQUISAR EM LINHA - VOLTANDO À WIKIPEDIA
(Continuação das notas sobre a Wikipedia.)
A comparação dos artigos da Wikipedia com os artigos de revista e com os jornais pode fazer-se, muitas vezes com vantagem para a Wikipedia, mas não me parece que seja a comparação correcta. A questão com a Wikipedia não é apenas saber se esta é mais ou menos "correcta" no seu conjunto do que a informação disponível noutras fontes. É saber como é que o erro, a falsificação, intencional ou não, são detectados, corrigidos ou evitados, num texto que aparece como sendo de referência.
Os artigos de uma enciclopédia pretendem ter um estatuto de referência pelo que a sua comparação tem que ser feita com textos com o mesmo estatuto e não com artigos de jornais.
Esta comparação foi feita entre a Wikipedia e a Enciclopedia Britannica para as entradas sobre ciência pela revista Nature, com resultados favoráveis para a primeira. Este estudo foi veementemente contestado pela Britannica e recebeu uma contra-resposta da Nature.
Não há maneira de escapar ao problema da validação científica no julgamento da Wikipedia e isso levanta o problema da edição das entradas na enciclopédia e coloca em causa o método "democrático" dos "grandes números" de colaboradores corrigindo-se uns aos outros. Os problemas adensam-se nas áreas das ciências humanas e nas áreas mais periféricas, logo menos escrutinadas, da Wikipedia, como é o caso da parte portuguesa. O problema parece-me insolúvel quanto se trata de questões muito controversas, cultural, religiosa e politicamente sensíveis.
No momento em que a Wikipedia se torna cada vez mais uma fonte para os trabalhos escolares, e para a citação em linha de curto fôlego, ela revela de forma muito interessante todos os problemas das novas literacias que são necessárias para trabalhar na Rede. Literacias ligadas à pesquisa e recolha de informação deveriam fazer parte de qualquer aprendizagem escolar desde o básico. Ler, escrever, contar, ver televisão e pesquisar em linha, são as literacias básicas do dia a dia de hoje. Todas, e todas ao mesmo tempo.
A Wikipedia é uma grande realização da Rede, compreende nas suas páginas uma imensa quantidade de informação, mas padece de problemas estruturais, que decorrem do seu modelo. Como muitas vezes acontece, o que lhe permitiu o sucesso é o que a torna doente. O debate sobre o projecto da Wikipedia é um dos que está no centro dos problemas da Rede enquanto "fábrica de informação", e um dos debates do imediato futuro.
Continuaremos.
*
Um exemplo. Outro dos artigos proposto para os melhores da Wikipedia portuguesa é o artigo sobre a "Oposição à ditadura". Como o artigo sobre o PCP ele suscita as maiores reservas. No seu conjunto ele tem erros factuais, mas acima de tudo propõe uma visão da história essencialmente ideológica, interpretativa politicamente. No início do artigo, uma fotografia de Cunhal de um lado e de uma foice e o martelo do outro, mostram bem a intencionalidade política do texto, com a agravante em termos de legibilidade de ter sido corrompido por tentativas de introduzir um vocabulário valorativo com outras origens (p.e. "a Acção Revolucionária Armada (ARA), apoiada e criada pelo PCP, e as Brigadas Revolucionárias (BR) se revelaram como uma importante forma de resistência contra o sistema colonial português, praticando actos terroristas e atacando principalmente o Exército e as suas bases militares", sublinhados meus a vermelho).
Os problemas de estilo narrativo, que são fundamentais nas entradas em matérias de ciências humanas, e em história em particular, colocam o texto ao nível das piores redacções escolares infantis, como pode ver aqui:
A oposição foi muito importante para a História de Portugal visto que ela contribuiu bastante para acabar a ditadura, acabando assim a repressão, a guerra colonial e o isolamento. Muitos intelectuais e pessoas importantes, como Humberto Delgado, Álvaro Cunhal, Norton de Matos, participaram na oposição e contribuíram muito. A oposição sofria muito com as perseguições e repressão da PIDE, a polícia política do Estado Novo, por isso ela optou pela clandestinidade. Muitos opositores foram forçados a exilar-se para o estrangeiro e alguns até foram assasinados pela PIDE, como o General Humberto Delgado.
Não é preciso ir mais longe do que a caracterização de um único período da história da oposição (1926-1943) onde se somam os erros factuais, uns a seguir aos outros, as omissões, entre as mais flagrantes o papel da guerra de Espanha, com a versão desvalorizadora da oposição anarquista e republicana, que faz apenas nascer a oposição eficaz com os comunistas e, dentro dos comunistas, com a direcção de Cunhal:
* Oposição fraca, desorganizada e violenta.
No princípio da ditadura, a oposição era desorganizada, era dominada por concepções anarquistas que privilegiavam a acção violenta, radical e armada.
Os republicanos democráticos organizaram e comandaram várias revoltas como as de 1927, 1928 e 1931 e tiveram lugar no Porto, Lisboa, Setúbal, Açores, Madeira e Guiné, mas todas elas fracassadas.
A revolta de 1934 que foi organizada pelos comunistas e operários que tentaram opôr-se à corporativização dos sindicatos, teve lugar na Marinha Grande, mas esta revolta, como as outras, fracassou.
Em 1935, os nacionais-sindicalistas, liderados por Francisco Rolão Preto (um integralista, defensor do Corporativismo e fundador do Movimento Nacional-Sindicalista, um movimento católico da Direita fascista, fundado em 1933 e proibido por Salazar em 1934 devido aos seus discursos anti-salazaristas), tentaram uma revolta ("tentativa de revolta do navio Bartolomeu Dias e do destacamento militar do Quartel da Penha de França") para derrubar o Estado Novo, em 1935, mas esta fracassou-se. Preto e alguns dos seus apoiantes nacionais-sindicalistas teve de exilar-se para Espanha.
Em 1938, um grupo de anarco-sindicalistas tentaram assassinar Salazar, o "Chefe", quando este se dirijia para a missa mas ele conseguiu escapar ileso."
A vermelho estão sublinhados os erros, quer factuais quer de classificação e caracterização. O resto do artigo é do mesmo género.
*
Não consegui deixar de esboçar um pequeno sorriso ao ler os seus comentários sobre a entrada que refere na Wikipedia.
Se a entrada tem do seu ponto de vista erros pode:
1 - Aceder à página da Wikipedia e alterar o seu conteúdo
2 - Criar uma página de discussão onde poderá colocar as suas reservas face ao conteúdo do mesmo.
E assim que vive a Wikipedia: alterações e discussões.
E assim nasce uma enciclopédia com 3,5 milhões de entradas em 205 idiomas e dialectos.
Na versão inglesa existem 1.469.342 entradas e 6.277.941 de outras páginas como páginas de discussão onde os diferentes utilizadores podem trocar pontos de vista sobre os conteúdos das entradas (na versão portuguesa existem 194.011 entradas e 516.818 outras páginas).
Estas estatísticas mostram o carácter avassalador do projecto Wikipedia que apenas é possível porque existe a Internet e pessoas dispostas a colaborar sem custos num projecto cujo objectivo último é criar uma base de conhecimento universal e de acesso gratuito.
Este projecto baseia-se em 2 pilares sendo um contratual e o outro tecnológico:
1 - Licença GNU: esta licença nasceu em 1991 com o advento do software livre. Em termos básicos, esta licença afirma que todas as alterações realizadas por alguém a algo que está afectado por uma licença GNU também ficam do domínio público. Ninguém pode reclamar como suas as alterações que realiza a algo que já é do domínio público.
2 - Tecnologia Wiki: a Wikipedia assenta numa plataforma Wiki que não é mais que uma aplicação de gestão de conteúdos adaptada a portais colaborativos. Todos podem alterar os conteúdos desse portal logo é importante ter um gestão de versões onde todas as alterações efectuadas são registas e existe sempre a possibilidade de colocar um artigo num estado anterior ao da sua modificação (como acontece nos casos em que as páginas são vandalizadas).
Os seus pontos de vista sobre a Wikipedia fazem-me lembrar as discussões sobre o software livre. Steve Balmer da Microsoft caracterizava esse software como um cancro porque não tinha qualidade. A semana passada, numa jogada magistral, a Microsoft assina com a Novell um contrato para uma melhor integração do Windows com o Suse Linux da Novell (ver aqui.)
Outros exemplos do "cancro" do software livre podem ser apontados como o Firefox e o OpenOffice.
A Wikipedia vive dos mesmos princípios que estão no software livre e que provaram ser os ingredientes para uma receita de sucesso.
Eu sei as razões porque o Dr. Pacheco Pereira tem de dizer mal da Wikipedia.
A primeira é porque a Wikipedia veio mostrar que o saber não é propriedade de uma meia dúzia de pessoas que têm acesso fácil aos meios de comunicação tradicionais (como televisão) e que por isso podem brilhar. A Wikipedia mostra que existem milhares de Pachecos Pereiras tão bons ou melhores que o original Pacheco Pereira.
Em 2ª lugar atinge as suas fontes de rendimento. A elite intelectual vive de se ter de pagar para aceder ao saber (compra de um livro, de um jornal ou de uma enciclopédia). A Wikipedia é algo que vai atingir algumas dessas fontes de rendimento.
Mas como em tudo na vida nada é garantido. Pode dormir em paz, Dr. Pacheco Pereira, porque a Wikipedia tem a sua sobrevivência sempre em risco quer seja pela falta de voluntários para escrever artigos ou pela falta de donativos que são a única fonte de rendimento deste projecto.
(Daniel Nunes)
*
Convenhamos. Nem tudo é perfeito. A Wikipédia, como qualquer outra coisa inventada por nós, tem os seus prós e os seus contras. A minha opinião vem a seguir. Obviamente conspurcada dos prós e contras da minha própria existência intelectual.
Como prós destaco:
- consulta rápida, fácil e gratuita;
- utilidade do hipertexto;
- não há impressão do erro e após a sua detecção permite uma rápida correcção.
É inegável a facilidade e a universalidade de consulta da Wikipédia. As enciclopédias de papel são demasiado caras e demasiado portáteis. O hipertexto é também de extrema utilidade que permite, no imediato, relacionar temas, nomes, palavras, conceitos, teorias. Por outro lado parece-me interessante que não haja a impressão do erro. Numa enciclopédia em suporte de papel o erro imprime-se e a sua detecção é mais difícil (o nosso estado de alerta para o erro de uma enciclopédia popular, por acharmos que é uma espécie de bíblia, está praticamente adormecido) e a sua correcção fica sujeita à edição de um novo volume, o que demora muito tempo e quase sempre tempo demais. Neste particular, a Wikipédia assume vantagem porque permite a rápida correcção do erro.
Como contras destaco:
- o anonimato dos colaboradores;
- as entradas raramente estão finalizadas;
- uso do espaço para fins sociais perniciosos.
O anonimato dos colaboradores é potencialmente crítico. E digo potencialmente porque não considero que esta questão se coloque entre os que sabem tudo e os que sabem nada, sendo os primeiros os "colaboradores das enciclopédias clássicas" e do outro os "colaboradores da Wikipédia". Isto levanta uma questão interessante e que tem a ver com a acreditação das enciclopédias. Não tendo as enciclopédias clássicas (a partir de agora refiro-me desta forma às enciclopédias em suporte de papel) bibliografia, os seus créditos são obtidos pelo nome da editora ou instituição que a edita e pelo coordenador dos volumes. Espontaneamente associamos uma enciclopédia clássica a um trabalho feito por gente que sabe tudo, vulgarmente conhecidos por especialistas. A Wikipédia seguiu o mesmo caminho, procurando credibilidade através do nome, algo que facilmente conquistou. Mas começa a haver um maior cuidado no apoio bibliográfico das entradas o que pode ser uma vantagem para a Wikipédia.
Repito. É um erro muito grande partirmos do princípio que esta questão se coloca entre os que sabem tudo e os que sabem nada. Até porque as enciclopédias clássicas, ditas de referência, também incluem erros e em proporções não muito díspares daquelas que apresenta a Wikipédia. Vejamos um exemplo. Num comentário à obra "Vida de Aristóteles" de António Pedro Mesquita, o José Pacheco Pereira escreveu que «(...) O que nela se aprende não é apenas sobre Aristóteles, mas também sobre a fábrica de uma biografia antiga, as fontes, os textos, os boatos, os fragmentos, as querelas de autoria e de identificação, as versões próximas ou longínquas ao original. Este aspecto, sem desmerecer a qualidade da própria biografia, ensina-nos muito sobre como se investiga a partir de uma realidade que os anos fragmentaram, dispersaram e corromperam, e isso diz-nos muito sobre o que o tempo e a história fazem a uma obra e à memória de um homem.» O mesmo problema ocorre com o neurologista português António Egas Moniz. As fontes secundárias foram-se produzindo com base noutras fontes secundárias (num total despreza pela fontes primárias, quanto mais não fosse para verificar a veracidade da informação) e dessa forma fomos assistindo ao longo do tempo a uma deformação da realidade e à criação de uma imagem que serve unicamente causas sociais absolutamente perniciosos. Resolvi por isso fazer uma coisa muito simples. Peguei no maior número possível de dicionários biográficos e enciclopédias, e fui pesquisar o dizem sobre a leucotomia, a lobotomia e sobre António Egas Moniz . Os erros são imensos (ver aqui) e, pior, são erros impressos, que circulam sob a máscara da credibilidade editorial. Quando detectados não há forma de corrigi-los a não ser através da edição de um novo volume.
Para terminar, gostava de alertar para o perigo do uso do espaço Wikipédia com fins sociais perniciosos. Recentemente vi-me envolvido numa discussão contra desconhecidos (os tais colaboradores anónimos) porque na entrada "Clara Pinto Correia", ainda muito incompleta, alguém tinha colocado em destaque o episódio do plágio na revista Visão. A forma como aquela página se apresentava era inaceitável pois era provinciano e difamatório. Depois de uma discussão (ver aqui) a situação ficou resolvida.
Na minha opinião, a Wikipédia pode ser um excelente instrumento de trabalho mas precisa de ser restruturada. Não podemos ignorar o facto de a Wikipédia ser usada como fonte bibliográfica por milhares de estudantes. Mas é também nossa obrigação aproveitar o pretexto e repensar o modelo actual das enciclopédias clássicas que, convenhamos, deixam muito a desejar.
(Ricardo S. Reis dos Santos)
*
O que afirma sobre os artigos no seu post referidos é verdade. No entanto, esses artigos não citam fontes, fazem afirmações não sustentadas e não são neutrais -- como bem refere no seu post.
Ora, os princípios da Wikipedia explicitamente recomendam que:
* "os artigos da wikipédia devem ser imparciais, ou seja, devem ser escritos numa forma com a qual ambos (ou todos) os lados envolvidos possam concordar com ele." (aqui)
* "os artigos não devem conter conceitos, recolha de dados, pesquisas ou teorias que não tenham sido anteriormente publicados em veículos adequados e reconhecidos para o efeito." (aqui)
* "qualquer leitor deverá poder aferir que tal material foi já publicado por uma fonte fiável" (aqui)
Donde:
1. Não parece ser um problema fundamental com a Wikipedia
2. Não se percebe como a entrada sobre a Oposição à Ditadura pode ser candidado a um dos melhores artigos. Deveria pelo contrário ser assinalado como opinativo e sem fontes (ver por exemplo o seguinte artigo em inglês, onde está visivelmente assinalado o facto de haver disputas acerca da precisão dos factos).
3. Porque é que ainda ninguém assinalou este artigo como contendo factos discutíveis ou como sendo opinativo, permanece para mim um mistério.
(Tiago Loureiro)
*
Num mundo ideal talvez a Wikipedia ou outra qualquer enciclopédia podessem ambicionar a um estatuto de referência. A seguir ao importante acontecimento recente (durante o ICM2006), que foi o reconhecimento do matemático russo Gregory Perelman pela comunidade matemática internacional, atribuindo-lhe a medalha Fields pelo seu trabalho sobre a conjectura de Poincaré, a qual ele recusou, levantaram-se diversas questões. Uma relaciona-se com o papel dos jornais e revistas matemáticas na validação e arquivo do conhecimento matemático, pois Perelman não procedeu da forma habitual, que seria submeter os seus artigos a essas revistas, antes divulgando-os apenas no servidor arXiv. O que é facto é que estes artigos foram considerados importantes para serem analisados pelos seus pares, embora tivesse havido uma quebra das regras. Não estaremos perante um caso semelhante, quando falamos da Wikipedia?
(Américo C. L. Tavares)
*
A propósito dos marroquinos, espanhóis e portugueses no artigo da Wikipedia, convém referir que basta aceder ao histórico da página. Podem-se comparar as versões da página. Vê-se claramente quando e quem as efectuou. Um recurso valiosíssimo que está ausente das versões em papel. E mais: pode-se ver que mais tem escrito cada pessoa! Quanto à alteração de vandalismo, pode-se ver claramente que foi efectuada às 7:21 de 6 de Novembro e anulada às 8:07 do mesmo dia. Um mero acto de vandalismo, facilmente resolvido. O problema coloca-se quando os vândalos são persistentes, o que felizmente não é muito frequente (e geralmente leva a que passado algum tempo se encerrem as alterações à página, para resolver o problema). Graças à própria Wikipedia, pude detectar uma alteração do mesmo utilizador à página da cidade do Porto, de menor teor, e anulá-la.
(Leonel)
*
Em resposta aos seus comentários sobre a fiabilidade da informação contida na Wikipedia, gostaria de levantar as seguintes objecções:
1) Até agora, todos os artigos que consultei na Wikipedia estavam não só correctos mas também, algumas vezes, mais completos e actualizados do que os seus correspondentes em enciclopédias com edição revista. Mas também acrescento que praticamente todas as pesquisas que fiz foram relativas a temas científicos e não históricos e, se bem me lembro, nunca li nenhuma entrada em português.
2) Relativamente à fiabilidade dos artigos da área das ciências humanas, talvez este artigo seja interessante.
3) Como já disse, não conheço o nível geral dos artigos em português, ou relativos a assuntos portugueses, mas não ficaria espantado se fosse fraco. Só que eu não acho que isto seja uma falha da Wikipedia, acho que apenas reflecte a debilidade da nossa classe acadêmica, e a escassez do debate intelectual e crítico na nossa sociedade (e também a nossa irrelevância no contexto intelectual global). Afinal, quantos erros semelhantes áqueles que apontou são cometidos nas edições, seja de livros ou revistas especializadas, com revisão, portuguesas?