ABRUPTO

7.7.06


NO PUEDE SER

Há anos que estou para contar esta história. Um dia, ainda o PSD era membro da Internacional Liberal e Reformista, calhou-me ir numa missão à Guatemala. Havia um pedido de um partido guatemalteco, que fazia ou queria fazer parte da Internacional, para que esta enviasse alguém para uma missão "importante", num altura em que se estava a tentar estabilizar uma frágil democracia no país. Não se sabia praticamente nada mais do que isto. Lá fui, sem saber muito bem o que ia fazer.

Quando cheguei ao aeroporto estava à minha espera um americano, o que me pareceu pelo menos bizarro. Levou-me para o Hotel Camino Real, um clássico das histórias da CIA na América Latina. A viagem prometia. No caminho para o Camino, ele explicou-me que trabalhava para um daqueles programas que o Congresso americano subsidiava para apoiar as experiências democráticas e que quem organizava a sessão era o Parlamento guatemalteco. Também não sabia detalhes.

Pouco depois apareceu-me pela primeira vez um membro do partido, a Unión del Centro Nacional (UCN), que se percebia estar um pouco nervoso. Não era capaz de me dar muitos detalhes sobre o que se passava e remeteu-me para uma conversa com o líder do partido, com quem me ia encontrar. Levou-me à sede do partido, uma espécie de armazém com dois andares, sendo o de baixo uma tipografia. Uns cidadãos que pareciam sair de um filme colombiano faziam a segurança ao prédio. Subimos ao andar de cima, onde havia uma espécie de penthouse com um ambiente de luxo. Em vários sofás de couro estava o directório da UCN à volta do seu presidente, a beber um uísque.

Jorge Carpio Nicolle era uma personagem que de imediato se percebia ter uma grande autoridade sobre os seus homens. Ninguém falava antes dele e ninguém falava depois dele. Tinha sido responsável por El Gráfico, um dos grandes jornais guatemaltecos, fora embaixador da Guatemala na ONU e presidente da Cruz Vermelha. Fundara a UCN em 1984, e candidatara-se à Presidência da Guatemala sem sucesso. Era considerado um dos impulsionadores do difícil caminho que a Guatemala então tentava percorrer para a democracia e para a liberdade, ultrapassando um período de violências, torturas e assassinatos. Vários esquadrões da morte e grupos paramilitares ainda estavam activos, e marcaram presença em toda esta história.

Continuava sem saber para que é que eu fora à Guatemala, embora percebesse que a legitimação de uma Internacional era muito importante para o frágil sistema partidário que se estava a esboçar. Mas, na conversa com Jorge Carpio Nicolle, encontrei a mesma tensão e nervosismo que já notara antes. Ele explicou-me que, ao abrigo de um programa destinado a consolidar o Parlamento guatemalteco, ir-se-ia organizar um debate em que cada partido tinha convidado um membro da "sua" Internacional para falar de uma doutrina política. Como ele sabia tanto sobre mim e sobre o PSD como eu sobre a UCN, estavam apreensivos sobre o que eu ia dizer numa situação muito volátil em que cada palavra contava, e na Guatemala matava.

Começou então uma daquelas conversas que só se tem uma vez na vida. De que é que eu iria falar? Bom, das ideias da Internacional liberal... Do liberalismo...

"- No puede ser. Aqui o liberalismo é a direita e nós somos um partido do centro constitucional...

- Bom e então posso falar do programa do meu partido social-democrata...

- No puede ser. Aqui a social-democracia é a esquerda e nós somos um partido do centro constitucional...

- Então se quiser posso falar dos novos fenómenos eleitorais na Europa que revelam um pragmatismo do eleitorado, escolhendo mais por mérito do que pela camisola (não disse bem assim, mas como tinha escrito então uns textos sobre o aparecimento daquilo a que chamara um "novo centro", talvez servisse para a função).

- No puede ser. E se falasse do centrismo?

- (Então já um pouco irritado pela conversa) No puede ser. Porque em Portugal o centrismo é a direita..."

A conversa não adiantou muito, enterrados nos sofás por cima da cidade de Guatemala, bebendo uísque, rodeados por vasos de plantas a darem a única nota de cor no cinzento do cimento dos prédios e de um crepúsculo a anunciar a época das chuvas que já devia ter vindo e se atrasara. No dia seguinte, parti para Atitlán, junto ao lago e aos vulcões sobre os quais Aldous Huxley escrevera, um dos sítios mais bonitos do mundo, mas então situado numa zona em que havia guerrilhas.

Em Atitlán passaram-se toda uma outra série de histórias, que ficam para outra altura, reveladoras da violência em que mergulhava a política guatemalteca, com ameaças de morte, avisos sinistros e uma panóplia de personagens saídos dos livros e voltadas para os livros. O encontro teve o mesmo ambiente único dos momentos em que tudo está a mudar, com resistências e coragens diversas. Muitos dos que lá estiveram, guatemaltecos e salvadorenhos (o delegado da Internacional Democrata-Cristã era de Salvador) tiveram percursos complicados, um foi Presidente e acabou preso por corrupção, outro foi primeiro-ministro, outros já desapareceram. Jorge Carpio Nicolle foi morto a tiro numa emboscada, pouco tempo depois, a caminho para Chichicastenango, num assassinato por encomenda de um esquadrão da morte ainda hoje não inteiramente esclarecido.

Das Internacionais apareceu apenas a minha e a Internacional Democrata-Cristã, o membro do PSOE que devia representar a Internacional Socialista faltou já não me lembro porquê. O representante do partido guatemalteco socialista pediu-me se falava também do "socialismo", cedendo-me o seu tempo, o que naquele ambiente me pareceu normal. Na verdade, a questão mais importante era a que separava a liberdade da ditadura, os que queriam acabar com as violações dos direitos humanos e os que não conheciam outra maneira de mandar. Estavam aliás todos, os bons, os maus, e os assim-assim, na sala envidraçada do pequeno hotel inacabado, onde ao longe se vislumbrava o círculo dos vulcões, o Atitlán, o San Pedro e o Tolimán, altos nos seus cones perfeitos, a mais de 3000 metros.

Por que é que esta conversa me veio à memória? Porque estamos em Portugal a cair numa mesma obsessão pelas palavras. Pelos nomes das coisas. Mais pelo nome das coisas do que pelas coisas. Como na Guatemala, nomes e identidade eram tão fortes que nomear alguma coisa era logo arregimentar-nos num exército.

Há uma semana, escrevi aqui sobre a necessidade de uma "oposição liberal moderada", o que é o mesmo que há muito tempo defendo. Escolhi as palavras e a sua ligação, substantivo e adjectivo, com um cuidado guatemalteco, recordando-me do seu poder ilusório, do seu enorme poder porque é ilusório. Escrevi uma "oposição liberal moderada", como podia ter também ter escrito uma "oposição liberal reformista", o que ofende os puristas, e parece querer dizer nada, mas diz bastante. O que não dá, nem eu a procuro, é identidade pelo nome. É liberalismo, mas não é o "liberalismo". É a prática mais do que a doutrina, porque, se houver pulsão liberal, basta-me. Se em cada medida de política se escolher a que mais nos dá liberdade, política, social, económica, cultural, é esse o caminho. É mais facilmente distinguir e escolher assim do que numa discussão doutrinária abstracta.

Não me interessa discutir a privatização dos rios, posso bem deixá-la para um longínquo futuro, mas já me importa combater pela saída do Estado dos partidos políticos, das centrais sindicais, das confederações patronais, das companhias de teatro subsidiadas, das "bolsas para escritores", do futebol, dos órgãos de comunicação social, ou seja do negócio da propaganda, do subsídio e da protecção. Feito isto, expulsado o Estado de onde ele não deve estar, nem muito nem pouco, podemos passar para onde ele deve estar minimamente. É que sem Estado mínimo, não há justiça social. O Estado máximo que temos é a melhor garantia de que os recursos escassos serão sempre mais para os que não precisam do que para os que precisam. E é isso que me interessa, não é ter uma camisola com o nome de liberalismo ao peito.

E eu acho, certamente com a mesma cegueira daquelas conversas guatemaltecas, que somos bem capazes de distinguir entre uma solução liberal e uma estatista e escolher entre as duas. Se vamos para os dogmas, perdemo-nos; se olharmos para as políticas, achamo-nos. Mais do que liberalismo pela cartilha doutrinária eu quero políticas liberais, vontade liberal, gosto irredutível por todas as liberdades. Se não, no puede ser.

(No Público.)

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© José Pacheco Pereira
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