ABRUPTO

17.11.05


TEMAS PRESIDENCIAIS (3ª SÉRIE)

UMA CAMPANHA DECLARATIVA


A campanha de Cavaco Silva é diferente de todas as outras. É feita para um candidato cujas características políticas e psicológicas são muito diferentes do habitual na "classe política" portuguesa. É feita em circunstâncias também sui generis: Cavaco Silva parte com patamares de apoio superiores aos dos outros candidatos todos juntos, o que é pouco comum em eleições muito contestadas e personalizadas. Esta última característica aparece pela primeira vez na nossa história eleitoral presidencial. Nem Eanes, nem Soares Carneiro, nem Freitas do Amaral, nem Mário Soares, nem Jorge Sampaio alguma vez estiveram numa situação deste tipo. Ou tinham um favoritismo esmagador, e os outros candidatos estavam apenas a "marcar presença", ou havia uma forte bipolarização com dois candidatos igualados.

Deixo aqui de lado o mérito relativo da mensagem de cada um, minimizando o papel de manifestos e programas, dado que mais do que as palavras é o interlocutor que lhes dá sentido. As mesmas coisas ditas por Cavaco e Soares são muito diferentes e os eleitores sabem disso muito bem, visto que ambos são conhecidos como políticos. Este efeito de conhecimento é um elemento essencial desta campanha. O julgamento do eleitorado parte de um princípio de necessidade: precisa, ou acha que precisa, de uma pessoa com determinadas características e história, e não de outra. Esta é hoje a força de Cavaco e a fragilidade de Soares.

Num mundo em que não houvesse ruído, ou seja no Paraíso ou no Inferno, vale o mesmo, esta escolha seria límpida. Acontece que existe um conjunto de práticas que correspondem ao que se pensa serem (ou deverem ser) as campanhas eleitorais, umas impostas pelas nossas tradições políticas, outras pelo sistema mediático. E estas práticas moldam, durante três meses, a imagem dos candidatos num contexto de sobreexposição que tem todos os riscos ou vantagens, dependendo do tipo de campanha.

Veja-se, por exemplo, como a primeira entrevista presidencial de Cavaco Silva na TVI revelou o melhor e o pior da face mediática de Cavaco, o candidato cuja face mediática cola menos com a sua exposição "pública". Quando vi a entrevista, Cavaco pareceu-me tenso, rígido, um pouco ansioso, mas convincente. Atenho-me à última classificação, a que mais depende da vontade própria, porque admito que as outras surgem contra a vontade do candidato. A tensão de Cavaco prejudica a mensagem, porque há sempre um ruído psicológico de instabilidade e insegurança na tensão. No entanto, como ele só fala de coisas "sérias", acaba por favorecê-lo, gerando um efeito de veracidade. Aquele homem está nervoso porque está preocupado e está preocupado por nós. É muito interessante verificar que, se me pareceu que na entrevista havia rigidez a mais e incomodidade face a algumas perguntas, que Cavaco podia responder de forma simples e de bom senso sem dificuldades, já quando a entrevista é reduzida aos excertos que são transmitidos nos noticiários, estes resultam muito eficazes.

Cavaco é pouco plástico e por isso tende a seguir uma linha pré-estabelecida com muita rigidez e isso, numa entrevista mais longa, prejudica-o. Já em fragmentos, o que é valorizado é o grau de convencimento pessoal, de dedicação às suas causas, que é muito difícil um político dos nossos dias transmitir e ele consegue-o. Por isso, não há frases engraçadas nem soundbites para reproduzir no dia seguinte, como acontece com Soares, que é sempre um must televisivo, mas uma mensagem limpa e convincente de dedicação à causa pública. Cavaco não consegue o mais fácil, mas consegue o mais difícil, como aliás revelam as sondagens que os seus adversários acham que caíram injustamente do céu, sem qualquer razão.

Pela entrevista, percebe-se que o que é essencial na campanha de Cavaco é a sua natureza de campanha declarativa, afirmando determinadas coisas e só essas, e não "conversando" com as outras campanhas. É isso que exaspera Soares, que precisa de interlocutor para o seu tipo de intervenção discursiva, e não o encontra. Como o candidato Cavaco é credível e gera um efeito de confiança, o que diz é muito eficaz. Sofrerá alguma erosão, em particular face ao estilo mais comunicativo de Soares, mas pode ter resultados surpreendentes. Já os tem, porque as sondagens revelam uma excepção, não uma normalidade.


UMA CAMPANHA PROVOCATÓRIA


Mário Soares seria um excelente candidato para o Bloco de Esquerda, ou melhor, para a área do Bloco de Esquerda, e digo-o sem qualquer intenção de minimizar a campanha e o candidato. Tivesse ele sido um candidato com uma lógica exterior aos conflitos internos do PS e centrado nas áreas onde conquistou influência nos últimos anos, que podia não ganhar, como tudo indica que não vai ganhar, mas faria uma campanha muito mais animada e que lhe seria menos penosa.

Soares estaria mais próximo do que realmente pensa, e seria mais convincente, pelo menos para uma parte do eleitorado. Um Soares solto, apoiado por uma franja considerável da nossa esquerda mais radical e activista, fazendo uma campanha na base dos seus temas favoritos, o antiamericanismo, a crítica à globalização, o ataque ao "neoliberalismo", em defesa dos "direitos sociais" contra o "economicismo" do Governo, sem receio de confrontar Sócrates, traria um incremento de força e unificaria mais a esquerda do que a actual campanha híbrida e pouco convincente.

O Bloco percebeu isso e hesitou. Fernando Rosas foi ao lançamento de Soares, um gesto politicamente simbólico, e a mandatária da juventude veio do BE. Quando a campanha endurece, vemos uma comunidade de temas em uníssono, com a mandatária da juventude de Soares e Francisco Louçã a usar contra Cavaco, por exemplo, a desgraça do jovem baleado na Ponte 25 de Abril. As sondagens revelam essa fluidez entre Soares e a esquerda radical quando mostram que se o BE não tivesse candidato, seria Soares e não Alegre nem Jerónimo, o verdadeiro receptáculo dos votos radicais.

O que prende Soares numa redoma fechada é que ele se convenceu de que, aparecendo do nada, depois do seu sonoro "basta!", podia reproduzir uma campanha como a de 1985 ou de 1991, num tom unanimista e mobilizador, levando tudo atrás do "animal político" por excelência. Ele ainda não percebeu que nada disso aconteceu, nem vai acontecer, e está penosamente a tentar chegar à segunda volta. Apanhado na sua armadilha, Soares está a fazer uma campanha que Louçã não desdenharia: provocações, picardias, frases assassinas, que são sempre um sucesso comunicacional, mas que o reduzem à situação do candidato menor anti-sistema que pretende crescer apenas no confronto com o maior. Soares faz isso muito bem, porque ele é bom nisso, mas também porque este tipo de campanha encaixa bem no tom habitual da própria comunicação social. Só que este tipo de campanha dificilmente lhe dará o estatuto de um candidato com sentido de Estado e a gravidade política que as pessoas associam à função presidencial.

Soares tenta bipolarizar a todo o custo, mas tem muita dificuldade em usar o armamento pesado que, numa segunda volta, não terá pejo em utilizar. Esse armamento assenta num antifascismo forçado, recorrendo a todas as metáforas dos perigos de Cavaco e do cavaquismo como subversão da democracia. Só que Soares não está na segunda volta e candidatos como Alegre, ao serem o seu contraponto, tiram-lhe o tapete e diminuem-lhe a dramatização. Quando Soares diz que com ele podem dormir descansados, Alegre vem dizer que com Cavaco também podem dormir descansados, quando Soares se gaba da sua superioridade cultural face a Cavaco, a mera existência de Alegre o diminui, onde Soares faz um contínuo de provocações, Alegre aparece como um factor de calma e seriedade.

Vamos ver como evolui o confronto entre a campanha provocatória e a campanha declarativa, porque é no confronto entre ambas que se vai jogar o que parece ainda em aberto na campanha eleitoral: se Cavaco ganha à primeira volta, e, se houver uma segunda volta, se é Soares ou Alegre que passarão.

(Hoje no Público.)

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Lido o seu artigo sobre as campanhas de Cavaco e de Soares, concordando na generalidade com o que diz e em absoluto no que se refere a Cavaco, gostaria no entanto, de deixar uma interpretação diferente da atitude de Mário Soares.

Tenho para mim que este é o verdadeiro Soares, contraditório prisioneiro entre princípios e carácter. Não simpatizando com a pessoa, acredito firmemente na sinceridade e boa fé dos seus princípios e da sua capacidade mobilizadora. Contudo, creio que os princípios públicos de Soares se circunscrevem a uma esfera política, em grande parte literária, teórica e essencialmente abstracta. No plano das suas relações pessoais, Soares aparenta agir regulado por motivos de decisão e acção muito diferentes e menos agradáveis que apenas a sua dimensão pessoal revela, nunca a sua dimensão pública. Foram estes diferentes motivos de acção que determinaram, entre outras, as ruturas com Manuel Alegre, em parte, com Salgado Zenha, a sua reacção após a derrota no Parlamento Europeu e, quanto a mim, a actual candidatura.

Soares vai perder estas eleições pela simples e comezinha razão de que, talvez pela primeira vez na vida, ele concorre a algo não por convicção política profunda, mas por razões de carácter. A quase total ausência de conteudo político relevante da sua campanha e a concentração quase exclusiva e hostil na pessoa de Cavaco, mais do que na campanha, vêm demonstrar, creio, este ponto de vista. Suporá talvez que já tudo lhe é permitido e esta suposição é uma questão de carácter.

(Fernando Calado Lopes)
*
«...quando Soares se gaba da sua superioridade cultural face a Cavaco, a mera existência de Alegre o diminui, onde Soares faz um contínuo de provocações, Alegre aparece como um factor de calma e seriedade...»

A lógica desta sua frase parece-me muito correcta.

A verdade isenta, parece-me, é que Manuel Alegre terá arriscado candidatar-se numa perspectiva ofendida, sem dúvida com um tom tranquilo e com um tom que toca a muitos, mas que também não toca a generalidade de um País em crise e desesperado e que está urgentemente precisado de um salvador supra-dotado. Não sei se Alegre, como Cavaco Silva, interpreta esse papel. Sinceramente, creio que Manuel Alegre, como símbolo de esquerda e provavelmente como um bom Presidente da República (porque tem um perfil melhor que os outros), tem o problema de ter a credibilidade que lhe falta; ou seja, nunca ter errado porque nunca esteve em sítio nenhum (ao contrário dos outros).

Manuel Alegre surge como uma espécie de pássaro ganhador da consciência de toda a gente, mas não tem a fibra que estamos habituados a ver nas pessoas aparentemente dotadas para o governo do País e terá o azar de não ser tempo para brincadeiras e frases genéricas de combate. O que nós precisávamos todos era de um Presidente fundador de qualquer coisa nova, e se bem que Manuel Alegre crie essa expectativa, também não possui o estatuto exemplar para uma coisa dessas. A não ser que por uma recusa visceral a Cavaco as eleições dêem por esse lado inventor. Seria engraçado que no fundo do poço os portugueses arriscassem o tudo ou nada.

Apesar de ter toda a minha simpatia (e apesar de eu gostar que ele ganhasse como elemento traído e vítima da máquina partidária que ninguém, no fundo, percebe -- numa espécie orinetação para o futuro), à situação de Manuel Alegre falta qualquer coisa que ninguém pode explicar ou arriscar inteiramente sem ser por um "vamos a isto, caramba!". Se calhar é isso que nos falta a todos. Se calhar é este o desafio que, se for devidamente identificado, pode dar numa boa campanha -- mas para isso era necessário que os meios de comunicação social não perdessem tempo com o espectáculo estranho que Soares inventou contra o candidato essencial e automático que é Cavaco Silva. Digo estranho porque Soares optou por uma campanha que sabe que não vence, e portanto há aqui um fenómeno que ninguém entende e nos anda a ocupar todos. Mas num plano de banda-desenhada que mimetiza a verdade e, pior, aquilo que realmente precisamos.


Não fosse este pormenor de Soares ter aparecido sabe-se lá porquê, teríamos umas presidenciais "à antiga", entre a direita pragmática e a esquerda fundadora. Se calhar, já ninguém pensa entre um lado e outro sem avaliar a validade das pessoas em si, e depois o excesso de informação-espectáculo (não da baixa-política, como se pretende fazer passar normalmente) está a baralhar o essencial do problema e a turvar a questão que se nos apresenta: a de decidir entre o prático Cavaco e o potencial Alegre. São dois termos muito claros que confundem qualquer simpatia.

(Vasco Godinho)

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