ABRUPTO

3.11.05


TEMAS PRESIDENCIAIS (2ª SÉRIE)



(No Público.)

Deriva presidencialista
- A existência de uma "deriva presidencialista" da "direita" é o mais presente fantasma desta campanha. Criado por Vital Moreira, que aparece como um dos principais ideólogos desta campanha de Soares (juntamente com Medeiros Ferreira e Mário Mesquita, nenhum um típico socialista), tem sido por ele alimentado com desvelo. Vital passa todo o tempo a denunciar uma "deriva presidencialista", que encontra essencialmente em dois autores que pouco têm a ver com a campanha de Cavaco (artigos de Rui Machete e uma entrevista de Nuno Morais Sarmento, aliás de natureza bem diferente), e depois, referindo-se ao que ele próprio escreve e aos seus ecos, pergunta: "Mas por que razão se está agora a discutir pela primeira vez os poderes do Presidente?" E responde, fazendo o mal e a caramunha, porque a "direita" tem um plano conspirativo para a presidência Cavaco. Assim não adianta discutir, porque o mero facto de se citar que o candidato Cavaco nada disse que justificasse tal "deriva", bem pelo contrário, já é contribuir para a discussão, cuja mera existência alimenta a suspeita de Vital Moreira. É um círculo vicioso, à volta de um fantasma.

Deriva presidencialista 2 - Claro que há uma vaga forma humana no fantasma da "deriva", mas essa está nos olhos dos que a vêem: percebe-se medo, não de qualquer deriva presidencialista, mas de uma presidência forte, legitimada por um resultado eleitoral inequívoco, que se fará sobre a quebra da hegemonia socialista, e, no caso de Soares, de uma fracção de socialistas, sobre uma parte do establishment nacional onde dominam, quase incontestáveis, há mais de duas décadas. Mas isso é do domínio do político, dos efeitos políticos inevitáveis pela forma como foi lançada a candidatura Soares e pouco tem a ver com os poderes presidenciais. A polémica da "deriva presidencial" preenche o desejo imaginário de esconjurar esta realidade, de não querer perceber que os tempos mudaram.

A melhor frase da campanha vinda do lado de Soares - Se eu raciocinasse como Vital Moreira faz a propósito da "deriva presidencialista", encontraria na frase insuspeita de Mário Mesquita - Cavaco despertará o "pior" de Sócrates e Soares o "melhor" - uma interessante demonstração de como é de Soares que virá a instabilidade política para o Governo e não de Cavaco. Porque o que Mesquita está a dizer, preto no branco, é que Cavaco ajudará Sócrates a prosseguir uma política de austeridade, com medidas difíceis, e que Soares o "moderará".

Comissões de honra - Entre Soares e Cavaco há mais de mil nomes nas comissões de honra, o retrato da elite portuguesa, os financeiros, os empresários, o alto funcionalismo, os embaixadores, os militares de alta patente na reforma, os gestores públicos, os advogados de negócios, os responsáveis pelas fundações, os "patrões" universitários, da medicina, da investigação, os pequenos, médios e grandes intelectuais, as "figuras da cultura", os desportistas, por aí adiante. A comparação que tem sido feita entre ambas vai no sentido de contrastar o apoio dos meios económicos a Cavaco e dos meios da cultura a Soares. Admitamos que assim é, embora seja já bastante menos evidente a hegemonia absoluta que Soares tinha nesses meios, perdendo para Alegre e Cavaco.

O que é politicamente mais interessante é a efectiva redução do espaço político de Soares ao centro e no centro-esquerda. O MASP III é mais socialista, quase nada social-democrata, e as candidaturas de Alegre e Louçã impediram-no de ser mais esquerdista, O que as sondagens revelam mostra-o as muitas centenas de nomes da comissão de honra de Mário Soares: um acantonamento da influência.

Político profissional -- É a mais estéril das polémicas, mas menos fastasmática do que a da "deriva presidencialista". De facto, há elementos do discurso de Cavaco que abrem caminho para uma ambiguidade sobre o carácter da acção política em democracia. É a percepção dessa ambiguidade que levou Mário Soares a dar as melhores das suas respostas na apresentação do seu manifesto de candidatura (a resposta sobre a negação do "suprapartidarismo" e sobre a entrega ou não entrega do cartão de militante). Aqui há de facto um choque entre duas culturas políticas, que reproduz em parte o choque com o "eanismo".

Político profissional 2 - Se entendermos que um "político profissional" significa que se dedica à política uma intervenção continuada, tendo-se ou não cargos, Soares e Cavaco são ambos "políticos profissionais". Se se entende que ser "político profissional" é fazer política com uma dedicação "profissional" e não amadora, Soares e Cavaco são ambos "profissionais". Ambos manejam os instrumentos simbólicos e de poder da política, com destreza. Ambos utilizam mecanismos de convencimento específicos da política, ambos recorrem a profissionais de técnicas modernas como o marketing e a publicidade, a organização de eventos, especialistas de imagem, mostrando em plenitude o seu profissionalismo.

Se se entende que ser "político profissional" é ter como "profissão" a política e nada mais, Soares é mais um "político profissional" do que Cavaco. O papel da profissão em Cavaco é maior do que em Soares, e pode com mais facilidade entrar e sair da política activa, tanto mais que não tem o envolvimento partidário de Soares.

Registe-se que, de todos, no seu envolvimento com a política, só Louçã rivaliza com Soares, seguindo-se Jerónimo de Sousa (cuja profissão é ser funcionário de um partido) e Alegre, que "ganha" mais como escritor do que como político. Se fizermos esta hierarquia, percebemos que é o envolvimento no quotidiano partidário, mais do que o exercício de cargos políticos, que faz a diferença de Cavaco. Cavaco parece menos comprometido com a política "profissional", porque as suas rupturas com a acção política o afastam dos cargos e do partido.

Linhas de ataque (Cavaco contra Soares) 3 - A linha de ataque de Cavaco é não haver linha de ataque. Esta linha de ataque é favorecida pelo facto de Mário Soares ter apresentado como explicações genéticas da sua candidatura o "impedir o passeio na avenida" de Cavaco, nesta ou noutra variante, o que tornou a sua candidatura muito redutora.

Linhas de ataque (Cavaco contra Soares e vice-versa) 4 - Esta linha de ataque resulta enquanto as questões permanecerem fantasmáticas - como é o caso da "deriva presidencialista" - ou ficarem circunscritas ao universo interno da agenda das outras candidaturas. Mas a questão das reformas recebidas por Cavaco é um exemplo de linhas de ataque (de Soares) mais eficazes, porque se situam no universo interior da própria candidatura e da sua imagem, que nunca sofreu o desgaste do ataque populista e demagógico.

Soares já tem todos os anticorpos a esse tipo de ataques, Cavaco não tem e confia na sua robustez, na sua imagem de homem impoluto e honesto, que não beneficia da actividade política para proveito próprio. Mas à falha de outras questões, haverá sempre a tentação de mergulhar Cavaco no mesmo caldo de cultura de suspeições e desprestígio em que está o grosso da política portuguesa. Isso fará resvalar a campanha para um terreno feio, mas o desespero é mau conselheiro.

Manuel Alegre - Posso estar enganado, mas tenho muita dificuldade em raciocinar como sendo Manuel Alegre o outro pólo da bipolarização presidencial. É verdade que as sondagens lhe dão marginalmente esse papel; no entanto, se elas forem tomadas à letra, então terá que se concluir que o que acontece é que não há mesmo pólo nenhum, porque estão todos tão abaixo dos números de Cavaco, que não há verdadeira bipolarização. Por muitas razões, de que exponho apenas algumas, penso que é o confronto Cavaco-Soares o confronto central destas eleições e que só esse pode impedir Cavaco de passar à segunda volta. Se ele não se verificar, não me parece que haja segunda volta.

O apoio do PS a Mário Soares pode ser renitente e forçado, mas, mesmo assim, será um factor decisivo a favorecer Soares versus Alegre. Depois virá a política, a história e a afectividade, em particular a negativa, a antipatia entre os dois. Ambos têm uma história conflitual comum, que é relevante para a contenda presidencial, em particular a experiência do segundo mandato de Soares. Por fim, os dois, Cavaco e Soares, são o verdadeiro contraditório, afastados pela mundividência, gostos, vida, irritações, feitio. Como tudo isto é bem conhecido dos portugueses, favorecerá na primeira volta a bipolarização Cavaco-Soares, marginalizando Alegre. Vamos ver.

(Continuaremos com outras questões: partidos políticos e candidaturas presidenciais, "suprapartidarismo", "eanismo" e "cavaquismo", Portas, PSD e PS, etc.)

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© José Pacheco Pereira
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