ABRUPTO

10.11.05


O RETORNO DA VIOLÊNCIA POLÍTICA DISFARÇADA DE "REVOLTA SOCIAL"



(No Público de hoje)


Se se pensa que está consolidada nas democracias a condenação da violência como instrumento político, pensa-se mal. Desde que os movimentos radicais da extrema-esquerda e extrema-direita, que defendiam a violência "revolucionária", perderam influência e se desintegraram nos anos 80, com o fim do surto terrorista que das Brigadas Vermelhas italianas, às FP portuguesas, atravessou toda a Europa, que parecia haver um consenso político de intransigência quanto ao uso da violência nos sistemas democráticos. O caso da ETA e do IRA eram excepções que confirmavam a regra de que em democracia a violência estava de todo excluída.

Mas desenganemo-nos. Bastou surgir uma nova violência, com novos actores e novas causas, ocupando, mesmo que ilusoriamente, o local e a memória dessa violência radical do passado, para se verificar que importantes sectores políticos da nossa sociedade democrática mostram uma enorme complacência com a sua utilização como instrumento político. Nos sectores tradicionalmente da "esquerda", e numa "direita" complexada e temerosa, volta de novo a haver um caldo cultural para que a violência política surja como aceitável, como "justificada".

O mecanismo fundamental de aceitação da violência nos nossos dias é uma espécie de sociologia de pacotilha, mais herdeira do marxismo do que parece, que explica a "revolta dos jovens" (bem-aventurado eufemismo) pelas condições sociais da sua vida. É uma "explicação" que tem muito de voluntarismo político e pouco de ciência, embora, como também acontecia com o marxismo no passado, pretenda fornecer uma inevitabilidade causal. Antes, os proletários deveriam fazer a revolução violenta porque eram explorados e a sua "mais-valia" apropriada pelos capitalistas, agora os jovens revoltam-se porque não têm "esperança no futuro" e são marginalizados. Em ambos os casos há sempre uma explicação social útil, que ilude o adquirido político do pensamento democrático, dissolvendo-o nas mesmas perigosas ideias sobre a "justificação" da violência pela causalidade social.

De novo, aqui se está num terreno de dupla ilusão: nem a "revolta" é tão "social" como parece, e inclui dimensões criminais, de vandalismo juvenil, de "mentalidade", que não são redutíveis à economia, como são deliberadamente minimizadas as motivações de ordem cultural, religiosa e civilizacional, bastante mais importantes do que parecem. É evidente que há factores "sociais" que explicam o que se passa, mas não é por aqui que se vai longe. Há desemprego, guetização, marginalidade, exclusão e racismo, mas há também outras causas de que se evita falar, tão "sociais" como as anteriores, como seja o efeito em populações deprimidas da intensa subsidiação do providencialismo do Estado, gerando expectativas artificiais e um direito permanente de reivindicação, cada vez mais incomportável numa Europa em declínio, da recusa do trabalho por uma "vida de rua" sem controlo, nem "patrão", de discriminações sexuais de origem cultural e religiosa que têm a ver com a ideia patrimonial da mulher muçulmana pelos homens da sua família. O urbanismo dos HLM é culpabilizado, mas cada uma das cités que agora se inflama - e pouco sabemos, porque ninguém nos quer dizer, se é significativo o número de "jovens" envolvido - é um verdadeiro paraíso comparado com os bidonvilles onde os emigrantes portugueses viveram.

Que a explicação "social" circulante é um passe-partout simplista, torna-se evidente quanto ela se centra na condenação da acção policial, na recusa da criminalização dos actos de destruição e violência, na ênfase na culpabilização do Estado, do Governo e dos políticos, na sucessão até ao infinito das desculpas para o que acontece, como se fosse inevitável que acontecesse. Abra-se um jornal, ouça-se uma rádio ou uma televisão, assista-se a um debate e é desculpa sobre desculpa, tudo isto culminando com a conclusão que os "jovens" têm razão em "revoltar-se". Ora isto tem mais a ver com a política do que com a sociologia.

É por isso que nenhuma desta mecânica explicativa se usaria se os tumultos tivessem origem em grupos racistas da extrema-direita, ou de grupos neonazis. Aí, o que se ouviria de imediato era o apelo à repressão, a criminalização ideológica, a exigência de acções punitivas drásticas. Ora, tanto quanto eu saiba, a proliferação de grupos neonazis, na Alemanha de leste, por exemplo, também traduz a mesma "falta de esperança" de uma juventude que tem elevadas taxas de desemprego. Só que aí ninguém avança ou aceita explicações "sociais", e ai de quem minimizasse qualquer violência desses "jovens" que nunca teriam direito a este tratamento tão simpático, mesmo quando também são jovens...

Outra variante da desculpa "social" para a violência é o factor identitário, a crise da segunda geração entre dois mundos culturais muito diferentes. Só que também muito voto para Le Pen e muito da violência racista alemã traduz igualmente a crise de identidade dos nacionais, quase sempre mais velhos e encurralados, face a um mundo que lhes parece estrangeiro, agressivo e hostil.

O que está em jogo não é o pastiche sociológico carregado de culpa que nos querem vender, num daqueles sobressaltos de unanimismo explicativo, a que estamos a assistir cada vez mais desde a guerra do Iraque, feito de pouco pluralismo, simplismos brutais e ideologia dominante do politicamente correcto. O que está em jogo é o primado do Estado de direito - contam-se pelos dedos de uma mão as pessoas que tiveram a coragem de falar das leis - e, com ele, as nossas liberdades e direitos adquiridos. Sim, são as nossas liberdades e a nossa democracia que ardem nos arredores das cidades francesas, não é Sarkozy, que, se fosse demitido, seria o melhor atestado da fragilidade do Estado francês e a receita para muitos mais tumultos em que ninguém teria mão. A oposição socialista em França e a cizânia dentro da maioria andam aqui a brincar com o fogo.

A minha geração namorou o suficiente com a violência política para a conhecer bem. Tinha as melhores das razões para esse namoro, havia um Estado ditatorial que conduzia uma guerra iníqua. Mas, como muitas vezes acontece, há uma mistura entre as melhores das razões e as piores das ideias, e há que reconhecer que o impulso terrorista que levou aos crimes das Brigadas Vermelhas também existia por cá. Se o 25 de Abril não se tivesse dado em 1974, vários grupos da extrema-esquerda portuguesa teriam caminhado para o terrorismo político que se prolongaria mesmo em democracia. Felizmente, a alegria e a força da liberdade reconquistada varreu tudo e todos e essa mesma geração tornou-se um pilar da democracia portuguesa, a que trouxe outras experiências de vida e luta.

Por isso, podemos perceber bem o que se está a passar na Europa. Os "jovens" são de facto os filhos dos imigrantes, cuja demografia salva e condena a Europa ao mesmo tempo, salva-a da extinção demográfica e condena-a a ser uma Europa em cujo espelho a antiga Europa greco-latina e judaico-cristã, a única que há, não se reconhece. Este dilema não está apenas a fazer arder os carros, está também a incendiar a democracia política com ideias que lhe são alheias e hostis.

Este dilema só pode ser superado com intransigência na defesa da lei e do direito e na proclamação, sem dúvidas, de que não é legítima em qualquer circunstância, insisto, em qualquer circunstância, o uso da violência para obter objectivos políticos quando se vive em liberdade. Este é um adquirido de muitos anos de luta, que custou muito sacrifício e muito sangue, mas é das coisas em que a Europa deve ter orgulho e não culpa. O modo como se está a ser complacente com os tumultos franceses mostra que onde devíamos ter orgulho passamos a ter vergonha, e passamos a ter culpa.

Estamos velhos e com medo, este é o estado da Europa.

*
Pensar sobre os acontecimentos em França requer desde logo a enunciação clara de uma prevenção: enveredar pelo discurso exprobatório e fazer comparações temerárias sobre a violência urbana não é prudente e indicia a useira e vezeira a preguiça do pensamento (o menosprezo apriorístico das interpretações da "pseudo-sociologia" não é atitude avisada, embora seja uma atitude que, entre nós, tenha um longuíssimo passado mas uma curtíssima história.). Recusar a explicação ou, melhor, recusar alguns conceitos que, tentativa e lacunarmente, concedem inteligibilidade aos acontecimentos é inaceitável do ponto de vista racional e é uma recusa risível do pensamento crítico (o que nos faz, também, recordar algumas reacções ao 11 de Setembro).

Em estupor, muitos descobrem agora que a Vieille France já não existe e apressam-se a apresentar agora uma versão Mad Max dos acontecimentos - distópica e apocalíptica. Outros, culpam o Welfare State e, perante o sofrimento social pandémico, pregam a self help e o fim do garantismo social do estado, visto como bloqueio inercial ao desenvolvimento económico. A "mão esquerda do estado" - , os "trabalhadores sociais" dos ministérios ditos despesistas (professores, polícias, assistentes sociais, médicos de família) - sabiam que o sofrimento social era pungente e a explosão social eminente, enquanto a "mão direita" - responsáveis do ministérios da economia e finanças, da banca ( a "alta nobreza de estado") - prosseguia a política consabida de estrito autismo e equilibrismo financeiro .

O recalcamento do sofrimento social retorna sempre. Não raras vezes, de forma conflitual e agónica. Recusar pensar este sofrimento é remetê-lo à invisibilidade, suplantando-o com o fulgor mediático das suas terríveis consequências.
Quem tem medo da sociologia?

(D.)
*
Sobre um post no Abrupto, de 7.11.05, gostaria de perguntar o seguinte:

- Quanto é que essa "enorme rede de subsídios e financiamentos estatais"
pesa realmente no orçamento de estado francês?

- Quanto é que "a enorme quantidade de pessoas que trabalha nestes programas, associações, ONGs" pesa no mesmo orçamento?

- Do conjunto de subsídios atribuídos na França, qual é a percentagem entregue às empresas e qual é a percentagem entregue a pessoas ou projectos sociais? (e, já agora, o mesmo para os EUA, porque ouvi lá dizer que os custos das ajudas a pessoas necessitadas é uma parte ínfima das ajudas estatais para as empresas)

Não escondo que este post me chocou pelo modo como desprestigia o sistema social europeu, que considero fundamental. Vivi alguns anos nos EUA, e vi algo completamente diferente desse "modo americano que vive acima de tudo do dinamismo da sociedade que lhes dá oportunidades de emprego e ascensão social". Vi um quadro de leis laborais tão incipiente (ou desconhecido?) que permitia fenómenos próximos da escravatura; imigrantes ilegais a viver em caves insalubres; acesso a um ensino com um mínimo de qualidade apenas para quem tem os meios para o pagar; escolas públicas com detectores de metais à porta; uma enorme mobilidade social para baixo (no espaço de semanas pode-se passar de classe média para homeless).

Também achei interessante o comentário sobre a fuga de cérebros. O estado social europeu garante ensino praticamente gratuito e até dá bolsas de estudo para os melhores irem para o estrangeiro aprender mais. Vi como isso se passa nos EUA: o pessoal chega, trabalha vários anos sem grandes custos para o laboratório que os recebe, e no fim o laboratório oferece propostas irrecusáveis aos que considera realmente bons. O "descontentamento destes cérebros em relação ao funcionamento da sociedade e ao sistema de impostos" é um caso de morder na mão que dá de comer - sem o estado social, a maior parte deles nunca teria tido a possibilidade de passar por uma universidade estrangeira, ou sequer estudar.

(Helena Araújo)
*
(...) a propósito deste seu artigo sobre a violência gostaria de lhe contrapor o seguinte:

Que embora concorde totalmente consigo existem culpados. Tanto à esquerda como à direita nunca lhes incomodou a exploração que foram alvo estes emigrantes. Uns com subsídios adiaram o inevitável os outros não tiveram a coragem para alterar as coisas. Porque se uns dão pão para não serem incomodados os outros não se incomodam e usam a sua supremacia económico-social para esmagar o próximo.

(Carlos Brás)

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