ABRUPTO

11.11.05


O POÇO

Construir um poço é um trabalho hegeliano, cheio de futuro, feito pela dialéctica, teleológico. Depois, trabalha a negação da negação, ou seja, o tempo. O poço é muito antigo, enorme, profundo, escavado directamente na rocha calcária, mais um abismo do que um poço se não fosse o seu formato de círculo perfeito. Que campos regaria? Não sei, desapareceram cercados por casas, por ruas. Em 1945, com as esperanças do pós-guerra, foi-lhe feita um cobertura de cimento armado, rudimentar, cobrindo o seu enorme arco e deixando sobre a terra uma pequena abertura, um poço que parecia um tanque de lavar, com um guincho para tirar água.

Com o tempo, a negação de novo, a cobertura foi sendo tapada por terra e ninguém sabia da dimensão do poço, a não ser pelo humilde tanque. Raízes estriaram as paredes procurando sempre cada vez mais fundo a água. O poço deixou de ser preciso, os ferros enferrujaram, o balde substituído por um regador que se desfez nas suas partes de ferro. Terra, ervas, silvas taparam quase tudo. Um dia, metade foi abaixo fazendo o abismo comunicar com as partes superiores do mundo. A ordem quebrou-se.

Para a repor tentou-se evitar que o que sobrava, uma laje ferida, perigosa, caísse para dentro. Impossível. A máquina azul que veio ficou com um dilema: ou se agarrava aos fragmentos superiores e corria o risco de mergulhar atrás deles, se o seu peso fosse o bastante para levar tudo atrás, ou tentava parti-los de forma ordenada. O poço mandou mais e à mais pequena tentativa caiu tudo dentro. A máquina não chegou a prender-se, felizmente, bastou tocar nas velhas paredes e foi tudo por ali abaixo. A terra tem este modo peculiar de nos engolir.

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© José Pacheco Pereira
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