ABRUPTO

22.7.05


A NOSTALGIA DO “AR LAVADO”


Hockney, Praça Vermelha
(Artigo do Público de ontem, a que acrescentei algumas ligações. O poema "Termidor errado" da ligação não é o citado, que não está em linha, mas um da mesma série.)
As antologias dos “poemas da minha vida” publicadas pelo Público, têm sido pouco comentadas em relação a um dos seus aspectos mais interessantes: a de serem espelhos procurados e faces construídas dos seus autores. Nessas antologias há dois tipos de pessoas: as que são escritores, ou ensaístas e que por isso têm um contacto natural e quase quotidiano com a poesia, como Vasco Graça Moura, Alzira Seixo, Urbano Tavares Rodrigues ou mesmo Miguel Veiga, e as daqueles que são figuras públicas essencialmente pela sua acção política. Neste último caso, o que mais me interessa para este artigo, a escolha não é apenas a dos “poemas da minha vida” mas também as dos “poemas que eu quero enumerar como sendo da minha vida”. Dependendo de uns ou outros casos pessoais, leituras, condição social e habitus, e do sentido de intencionalidade política, essas escolhas oscilam entre a primeira e a segunda fórmula.

Uma das antologias que eu esperava com mais interesse era a de Jerónimo de Sousa (JS), o tipo de pessoas a quem habitualmente não se pergunta quais são os poemas da sua vida, inclusive por racismo social e intelectual, muito mais poderoso na nossa sociedade do que se pensa. As escolhas de JS tinham especial interesse porque da lista dos autores era o único que vinha de outra condição social, um antigo operário industrial, tipo de escolaridade – é o único que não é “doutor” - e com uma vida não muito distinta da sua condição social de origem, ou seja, para usar o eufemismo do costume, “modesta”. As minhas expectativas não saíram goradas e a sua antologia é das mais interessantes quanto não só ao “vivido” dos poemas, como àquilo que ele nos quer dizer ao escolher aqueles poemas e não outros.

Claro que eu não sei até que ponto cada autor em particular é o genuíno “autor” dos “poemas da minha vida”. E digo isto não por causa de ser a antologia de JS que estou a comentar, digo-o em geral. Não tenho dúvidas que JS leu muito mais do que muitos arrogantes senhoritos a quem ninguém questiona a sua evidente ignorância e pouca leitura e que no entanto passam por ser mais cultos pelo divino privilégio da classe social e do “Dr.” no início do nome. Mas, como responsável político muito profissionalizado, não sei se pediu sugestões para a realizar, o mesmo se podendo dizer de outras destas antologias.

Seja como for, as escolhas de JS encaixam como uma luva, e com uma consistência maior do que noutras antologias mais politicamente correctas e por isso artificiosas, como é por exemplo a de Marcelo Rebelo de Sousa. Este tem como poemas da sua vida demasiados poemas escritos nos últimos dez anos para suspeitarmos se forjou de facto a sua “vida” apenas nesta última década, lendo Rui Namorado, Lobo Antunes, Ana Luisa Amaral, Maria do Rosário Pedreira, Fernando Pinto do Amaral, Ana Marques Gastão, Francisco José Viegas, Gonçalo M. Tavares, Daniel Faria, Mário Rui de Oliveira, José Luis Peixoto e muitos mais, vivos, publicando ontem, mas ainda votando hoje. Eu duvido sempre de uma antologia de “poemas da minha vida” que não tem os “poemas da vida” de muito mais gente do mesmo meio social e cultural e que evita os poemas que estavam nos manuais escolares e nos livros da “primária”.

Pelo contrário, no livro de Jerónimo de Sousa está aquilo que um operário, autodidacta em grande parte, comunista tanto como anti-clerical, vivendo nos meios associativos populares da Margem Sul, assistindo por obrigação de partido, dedicação ideológica e solidariedade política, à “cultura” que outros intelectuais comunistas traziam a esse mundo muito peculiar, sobrevivência de um Portugal muito pouco conhecido nas classes “altas”, podia “gostar”. E, por isso, a maioria dos poemas escolhidos mais do que poemas da revolução são-no da revolta, da injustiça, do ideal prometaico, da utopia do “sonho”, e muito portuguesmente, de uma apologia racionalista, quase maçónica, do vitalismo da natureza versus as perversões da sociedade. É a nostalgia de um mundo natural ideal, a nostalgia do “ar lavado” que perpassa no “sonho” dessas poemas. E isso é, de há muitos anos, a “cultura” tradicional da aristocracia operária portuguesa, fosse anarquista, republicana, carbonária, radical ou comunista. Poema atrás de poema no livro de JS falam-nos da força da natureza impoluta, panteísta quanto baste, de onde emerge uma pureza que se perde nas desigualdades sociais, na opressão, na violência dos “de cima” contra os “de baixo”.

JS tem no livro alguns poemas de Camões (inclusive o “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” talvez o mais citado por todos), algum Bocage da “liberdade querida e suspirada” mas nunca teria o Bocage obsceno que Soares cita com o à vontade dos “de cima”, mas que ofende o moralismo tradicional dos meios em que filhas e irmãs fornecem o contingente para a devassidão “dos de cima”, mas para além destes quase tudo o resto são só escolhas que nenhuma outra antologia reproduz, ou o reproduz de forma tão consistente. É o caso de João de Deus e Antero, de Guerra Junqueiro, que eu seria capaz de apostar dobrado contra singelo que teria que estar na antologia de JS, como aliás apostaria, antes de a ler, em Manuel da Fonseca.

Só que na antologia de JS o que está em João de Deus, é o mesmo que está em Antero (daí a escolha de “Luz do Sol. Luz da Razão”), o que está em Guerra Junqueiro, em Cesário Verde, em Florbela, em António Nobre, em Pessoa / Caeiro (nunca esperaria Ricardo Reis, nem lá está). Nestes dois últimos casos, JS mostra o poder de apropriação que consegue ter esta antologia mesmo em relação a autores que podiam estar distanciados da linha vitalista que percorre todo o livro.

Depois, com José Gomes Ferreira, dá-se uma ruptura com esse fundo panteísta da natureza, versus um Divino mau e desnecessário, uma linha anticlerical muito popular, para se enunciar, em termos mais claros, a revolta. E na sua explicitude que pode parecer ingénua, mas que tem a ver com a persona, o grau de frontalidade poética é maior do que o da política. JS publica um poema de José Gomes Ferreira “Termidor errado” claramente contra a democracia parlamentar e dois poemas de nostalgia do “socialismo real”, da URSS revolucionária, de Maiakovski. Á medida que o livro avança, JS não tem problemas em escolher quase só poetas comunistas ou antigos comunistas como Neruda, Brecht, Guillén, Eluard, Agostinho Neto, e os portugueses, Armindo Rodrigues, Carlos de Oliveira, Egito Gonçalves, Arquimedes da Silva Santos, Castrim, Saramago, Ary dos Santos. Maria Velho da Costa, Joaquim Pessoa. Os que o não são ou escreveram poesia de resistência, como Sena, Sophia, Alegre, ou O’Neill, ou são as vozes que se ouviriam, mais do que se leriam, em qualquer recital popular de poesia, como a “Pedra Filosofal” de Gedeão, ou em letras de fado, como o “Maria Lisboa” de David Mourão-Ferreira (quem cita o “Fado Peniche” é Cadilhe…).

Em suma, esta antologia é mesmo de “poemas da vida”, da que se tem e da que se constrói, com uma grande e reveladora consistência:

Em baixo! O que é em baixo?
Em baixo estar que tem?
Ninguém à eterna sombra
Nos condenou! Ninguém!


Disse Jerónimo de Sousa através de Antero. E é verdade.

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© José Pacheco Pereira
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