ABRUPTO

31.7.05


COISAS DA SÁBADO

UM OLHAR ÚNICO

Há já algum tempo li um comentário num blogue muito de direita sobre o escândalo que seria haver um Museu do Neo-Realismo. Para além do facto, evidentemente desprezível, de terras como Vila Franca de Xira terem construído muita da sua identidade na imagem que delas deram os autores e a mundividência do neo-realismo, ou, se quiserem, da condição operária, ou mesmo da experiência do comunismo, (no caso de Vila Franca de Xira, comunismo mais touros) e que por isso seja natural ter um Museu do dito, o que pesava nesse comentário era muita ignorância e a displicência que essa ignorância dá à política transformada em anátema..

A maioria da nossa poesia, ficção, pintura, etc, neo-realista é má, como é má a maioria da nossa escrita romântica, o nosso teatro em geral, a nossa música nacionalista, por aí adiante. Sobre a qualidade e os dilemas estéticos do neo-realismo português escreveu melhor do que ninguém e no tempo certo, insisto no tempo certo, Eduardo Lourenço.

Mas não é esse o ponto. O ponto é soberbamente demonstrado pela notável série televisiva que tem passado na 2, em que Scorsese, um realizador ianque de Hollywood, tão naturalmente anticomunista que não precisa de o enunciar, fala do cinema neo-realista italiano, com um "afecto" que deixaria possessos os nossos sectários políticos. O ponto é que há no neo-realismo, português também, um olhar único, um momento de revelação de um Portugal real em que a maioria dos portugueses viviam, mas que não existia para o Portugal nacionalista. Não existia e pelos vistos não existe. Se não tivesse encontrado o olhar de Pomar, ou de Carlos de Oliveira, ou de Lopes Graça, olhar esse muito para lá dos cânones estreitos da estética oficial do próprio neo-realismo, não existiria. Como os pescadores da A Terra Treme de Visconti ou os "inúteis" de Fellini, ou os derrotados alemães da Alemanha, Ano Zero de Rossellini.

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© José Pacheco Pereira
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