ABRUPTO

15.7.05


ALGURES, PERTO DE SI


Watteau, Tempestade

(Como houve alguma discussão sobre este artigo nos blogues e ele está indisponível no Público de ontem, reproduzo-o aqui por uns dias e depois vai para a "verdade filha do tempo".)


Algures, perto de si, acabará por explodir uma bomba, flutuar uma doença, fluir um veneno. Tão certo como dois e dois serem quatro, o que não é absolutamente certo, mas é quase certo. Um dia alguém perceberá que é mais simples atacar no aeroporto de Lisboa, do que em Londres, pesará os prós e os contras do impacto publicitário, e escolherá Lisboa, ou um evento lisboeta, para dar uma lição aos “novos cruzados”, ou seja nós. É só, parafraseando a frase certeira sobre Londres, uma questão de “quando”.

É por isso que não basta bater no peito e dizer que “somos todos londrinos” e na volta da esquina já estar a discutir as tenebrosas propostas do Sr. Blair para limitar direitos de privacidade das mensagens porque isso facilita a vida aos terroristas. Na volta da memória, escarnecer o Patriot Act, essa “fascização da América” como já lhe ouvi falar, atacada por tudo que é burocracia bruxelense e suas extensões nacionais, como se, sobre a dupla pressão dos autocarros que explodem, e da insegurança popular, não se tenha também que ir por aí, com a prudência e as cautelas que as democracias tem que ter por tal caminho. Já o disse e repito, a separação cada vez maior entre elites europeias e americanas nesta questão do terrorismo, vem dos segundos se acharem em guerra e os primeiros não. Será apenas uma questão de tempo, até esta ser apenas uma questão de termos, não de substância, porque, falando como um sábio da Guerra das Estrelas, “em guerra estamos”.

É também por isso que poucas vezes como nos dias de hoje se vê o grau de demissão do pensamento ocidental como nestes momentos. Mário Soares é entre nós o principal “justificador”, introduzindo com displicência, dele, e complacência de muitos, todos os temas dessa culpa auto-punitiva e demissionista: valorização das “causas” pelo combate inevitável da “pobreza” contra a “opressão globalizadora” e a “superpotência única”, necessidade de retirada total do mundo ocidental dos locais da “humilhação”, Palestina e Iraque, “negociação” com o terrorismo e ramificações várias destas posições mais radicais.

Olhamos para o homem da bomba e tentamos percebe-lo e explica-lo, quase sempre projectando a nossa visão e os nossos combates políticos caseiros para um dimensão que nada tem com eles. Encontramos nos velhos e errados quadros interpretativos do nosso marxismo vulgar, uma explicação causal subsidiária da contradição exploradores-oprimidos. Fora dessa banalidade interpretativa, factualmente falsa, não conseguimos pensar.
A tradição da nossa cultura foi sempre colocar-nos dentro dos olhos dos outros, quanto mais Outro os outros forem. E num certo sentido este é um sinal da vitalidade da cultura ocidental, que vem da sua dupla génese quer na tradição greco-latina, quer cristã. Mas se é assim que fazemos, não o fazemos (ou não o fazíamos) para encontrar-nos no Outro, quando a face do Outro era a da nossa morte, a da nossa destruição. Nietzsche diria que isto era inevitável após dois mil anos de cultura de culpa judaico-cristã, outros diriam que mais cedo ou mais tarde o Dr. Freud nos traria esta versão de Thanatos, onde Sade, Netchaiev e Bin Laden estão unidos numa mesma negação. Duvido, até porque nem Bin Laden, nem Hitler, nem Staline são vozes da culpa que eles nos dizem termos.

Eu acho que tem todo o sentido “metermo-nos na cabeça” de Hitler hoje, e ler o que de interessante disse sobre a Europa face à Rússia e aos EUA, ele que era um percursor, ao modo ariano, de uma Europa unida, contra os imperialismos americano e soviético. Mas nunca me pareceria razoável, acharia até mesmo uma traição, querer “meter-me na cabeça” de Hitler entre 1933 e 1945, quando os “meus” o combatiam e ele os queria matar. As únicas explicações que me interessavam, as únicas “causas” que eu queria perceber, eram aquelas que me permitiam derrotá-lo funcionalmente, as que eram instrumentais para acabar com ele e com os seus.

È importante perceber que, mesmo nas questões onde o meu pensamento lhe admitia “razão”, essa razão só pode ser defrontada depois da eliminação dele - válido para Hitler, ou Staline, ou Bin Laden. Não há causalidade que me interesse porque ela institui uma nobreza de pensamento qualquer, mesmo residual, que o ajuda a matar-me e que institui verdadeiramente o niilismo. E da falência do pensamento ocidental, da sua dificuldade e complexo em lidar com as suas fronteiras culturais e civilizacionais, está a nascer o niilismo e a face do niilismo actual é a justificação do terrorismo da Al-Qaida. Uma coisa é o movimento livre do pensamento, o voo crepuscular da coruja, que não conhece limites ao “pensável”, outra é a incorporação, quase sempre como culpa, da vontade de morte (a minha) pelo alheio. Aí a boa tradição do pensamento ocidental é outra: o combate frontal e directo.

Essa também é (era?) a nossa tradição: quando se está em guerra corre-se para a frente. Vem na Ilíada. Foi assim que Alexandre combateu em Gaugamela, os marinheiros gregos em Salamina, os cristãos coligados em Lepanto, os ingleses contra os zulus. Combate duro, directo, na primeira linha, frontal com o inimigo, é uma velha tradição da forma de lutar do Ocidente. Uma das consequências desta frontalidade do combate, está expressa na velha máxima militar e civil de que “em tempo de guerra não se limpam armas”, o que não é bem verdade, mas percebe-se o que se quer dizer.

Voltemos à questão da guerra. Eu bem sei que há quem ache que não está em guerra, e que a expressão “guerra” para caracterizar o que se está passar é enganadora. Talvez valha a pena discutir a terminologia, porque ela tem claras desadequações, como aliás, o quadro legal no direito internacional da guerra, para defrontar este tipo de combate. Mas a mim não me choca chamar guerra a um conflito que tem as características de ser global, da Indonésia, à Índia, á China, às antigas republicas soviéticas da Ásia Central, da Europa toda, aos EUA, que tem objectivos “não negociáveis” por incompatibilidade total de visões do mundo culturais e civilizacionais.

Acima de tudo, não compreendo porque razão um terrorismo apocalíptico, que tenta por todos os meios ter as armas mais pesadas, nucleares, químicas e bacteriológicas, para garantir o seu Armagedão sacrificial, que tem como objectivo a guerra total, ou seja a aniquilação de milhões dos seus adversários, haja os meios para isso, não tem que ser combatido com tudo o que tenho á mão: tropas, polícias, agentes de informações, à dentada diria um velho inglês da Home Guard, daqueles que esperava a invasão da sua ilha e achava que sempre podia levar um “boche” consigo. E aí o “não se limpam armas”, é de um simplicidade brutal. Ou nós ou eles.

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