ABRUPTO

17.3.05


MEMÓRIAS DE BIBLIOTECAS (9ª série)



(Jan Lievens)

Ao ler episódios das Memórias das Bibliotecas veio-me a ligação com as Cooperativas Livreiras de Estudantes que nasceram entre nós nos anos 60. A LIVRELCO, em Lisboa, a UNICEPE, no Porto e a UNITAS em Coimbra.
Para além de algum papel que desempenharam na resistência contra a ditadura, foram âncoras importantes no desenvolvimento cultural e até profissional dos jovens de várias gerações.
Comungando dos ideais do "velho" cooperativismo de Rochedale, eram geridas pelos estudantes, procurando-se fugir aos circuitos comerciais tradicionais e assim fazer contribuir para que o livro pudesse ser uma mercadoria mais acessível a camadas com reduzido poder de compra.
Para além de que, correndo inevitáveis e óbvios riscos, furar o cerco da censura e da figura do "livro fora do mercado" era possível nesses redutos tolerados pelo regime de então, mas sempre vigiados e perseguidos.

Fui dirigente da UNICEPE durante alguns anos (creio que a cooperativa ainda que penosamente, subsiste). O Pacheco Pereira era sócio e por lá o via com alguma frequência. E outros, como o Vasco Graça Moura, o Armando de Castro, o Mário Viegas, para só falar de alguns que me vieram de imediato à memória. Eram tempos de algum idealismo e porventura de alguma utopia. Mas eram também tempos de inconformismo e de afirmação.

(António Moreira)


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A mim poucas memórias emergem das bibliotecas. Filho de pais humildes, a quem os livros de estudo eram inclusivamente oferecidos por alguém que conhecia editores, só já espigadote comecei a frequentar a biblioteca da mui nobre, sempre leal e invicta cidade do Porto (longe realmente vão os tempos que deram origem a estes epítetos...). No entanto nunca me esquecerei dos longos momentos que gastei a ler nos emergentes supermercados da altura (já lá vão trinta e muitos anos e estas unidades de comércio já faziam furor). Sem ter dinheiro para comprar esses criadores de sonhos, aproveitava a "impessoalidade" desses estabelecimentos comerciais, como felizmente ainda hoje frequentemente encontro algumas crianças, para instalado num canto qualquer me deliciar e me ausentar deste mundo ao entrar por exemplo no mundo delicioso e de aventura de Enid Blyton; e se alguém me oferecia um livrito (o que raramente acontecia) e se gostava dele, lá ficava eu a lê-lo até às tantas, com a luz do quarto apagado (já que a energia eléctrica, apesar de bem apregoado e facilitado o seu uso pelo Dr. Salazar, era cara) e uma lanternita acesa debaixo dos lençóis. Para meu castigo tenho um filhote, que apesar de muito estimulado, a leitura parece ser tortura de Guantanamo. Como é injusta a vida.

(Abel Gomes)

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A propósito do deslumbramento confessado por Amf perante um milhão de volumes ao alcance físico da sua mão das 7h às 24h, na biblioteca de uma universidade americana, lembro a extrema necessidade de repensar os horários das nossas bibliotecas, a começar pela Biblioteca Nacional. Frequentadora regular da BN nos últimos anos, senti muitas vezes a dificuldade de conjugar a investigação que realizava para o doutoramento com o meu horário de trabalho na escola onde sou professora. Tive mais sorte na preparação do mestrado, beneficiando de inúmeros serões e fins de semana passados na belíssima biblioteca da Universidade de Hong Kong, onde até as diversas máquinas fotocopiadoras espalhadas pelas salas de leitura funcionavam com o cartão que servia de passe para o metro e autocarro.

(Helena Rodrigues)

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Este texto foi feito a pedido do “Jornal de Coimbra” para a rubrica: O LIVRO QUE NÃO EMPRESTO

Não consigo imaginar-me a recusar emprestar um livro. Não me é fácil, sequer, pensar nessa possibilidade pois, embora me veja a mim mesma como uma leitora compulsiva, nunca fetichizei os livros ou a sua posse. Se, como toda a gente, prefiro ler um livro novo a um muito usado, são-me, contudo, bastante indiferentes os aspectos exteriores ao próprio conteúdo do livro, o que talvez se explique pelo modo como principiou, o que não posso deixar de considerar, como a minha frutuosa carreira de leitora.
Corria o ano de 1958, andava eu na 2ª classe, quando a Fundação Calouste Gulbenkian pôs a funcionar o seu plano de bibliotecas itinerantes. A família acorreu a inscrever-se (pai, mãe, avô, tia e eu, com a toda a importância de uma recém letrada - com cartão e tudo). Durante muitos anos lá ia eu à biblioteca, todas as semanas, levantar os "meus" cinco livros, o número máximo que permitia o estimado professor Armindo Pega. Não foi preciso passar muito tempo para que eu e as minhas duas irmãs lêssemos, cada uma, 15 livros por semana! Ali-Bábá não entrava na sua caverna, cheia de tesouros, e não a olhava com mais êxtase do que nós ao subir para aquela carrinha, cheia de livros usados, prontos a serem emprestados.
As minhas prendas de criança foram sempre livros. Tive esse privilégio, o de ter nascido numa família onde não passava pela cabeça de ninguém que livros não fossem o melhor presente a dar "às miúdas". Devo ao meu Tio Abel livros como "O Feiticeiro de Oz", refulgente nas suas duras e grandes capas amarelas ou "Os Cinco na Ilha do Tesouro", de Enid Blyton, o qual inaugurou, uma sucessão de naufrágios que tornaram o mar da minha infância particularmente enxameado de piratas.
Um dos meus preferidos era a "Ilha do Tesouro" de Robert Louis Stevenson, mas também "Dois Anos de Férias", "Os Filhos do Capitão Grant" ou a "Ilha Misteriosa" de Júlio Verne. A este grupo juntava-se ainda o "Robinson Crusoe" de Daniel Defoe, "Um Robinson Suíço" e os "Robinsons dos Galápagos". Apelando fortemente para a imaginação, com ou sem naufrágio, com ou sem piratas, nestes livros, as personagens são sempre confrontadas com os mil perigos e todos os riscos de meios desconhecidos e adversos e, numa altura em que os programas de física e química ensinavam a fazer sabão, pólvora ou vidro (tudo coisas úteis, especialmente numa ilha deserta) eu passava horas a ficcionar as minhas lutas, vitoriosas (está bem de ver!), contra todas as ciladas que a natureza ou os homens pudessem armar...
A fase dos piratas e das aventuras, desenvolveu-se em paralelo com clássicos da literatura infantil e juvenil. Nomes como Louise May Alcott (Mulherzinhas), Frances Burnett (O Jardim Misterioso), Elizabeth George Speare (A Feiticeira de Blackbird Pond) ou Selma Lagërlof (A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson) constituem, ainda hoje, referências que tenho tentado passar às minhas filhas. O período que imediatamente se segue é marcado não só por autores como Charles Dickens (quilos!), Walter Scott (ainda mais quilos!), Jorge Amado, ou John Steinbeck, mas muito especialmente por Jane Austen e Charlotte Brontë a que sucede, já estudante universitária, o deslumbramento com os "Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Marquez ou "L'écume des Jours" de Boris Vian.
Ainda do tempo do liceu, Miguel Torga, cujos livros de contos li pelos quatorze, quinze anos e, antes deste, logo pelos dez, doze anos, o queridíssimo Júlio Diniz. Associarei sempre aos anos 70 autores como Nuno Bragança, Herberto Helder, Jorge Luís Borges, Aquilino Ribeiro, Carlos de Oliveira, José Régio, Ferreira de Castro. Houve autores que li, de rajada, tudo o que deles consegui encontrar como foi o caso de Jorge de Sena, Eça de Queiroz ou o caso mais recente de Philip Roth. Outros que vou acompanhando ao ritmo das suas publicações: Agustina Bessa Luís, António Lobo Antunes, José Saramago e, até há pouco, José Cardoso Pires e Sofia de Melo Breyner.
Tal como ao entrar em certos cafés, em Coimbra, me lembro das "cadeiras" que aí "fiz", quando olho para a minha vida vejo-a sempre pontuada por livros e autores, numa associação automática e imediata. E se dá perversidades como ligar Marguerite Yourcenar e as suas "Memórias de Adriano" à Praia da Rocha, também faz de 1964 o ano de "Servidão Humana" e "O Fio da Navalha" de Somerset Maugham, de 1971 o ano de "Exercícios de Estilo" de Luís Pacheco, de 1972 o ano de "Novas Cartas Portuguesas", de 1973 o ano de "A La Recherche du Temps Perdu", de Proust, ou de 2004 o ano de “A arte de viajar” de Alain de Botton
Poderia continuar a falar de livros ou de autores por muito mais tempo, um prazer que as presentes limitações de espaço não permitem. Um livro não se esgota na sua leitura, permenece, a vibrar, em nós e nas relações que estabelecemos com os outros. Tenho a sorte de partilhar este gosto com muitos amigos e pessoas de família, como a minha Mãe, com os quais participo numa rede informal de empréstimos. É com esse apoio que me mantenho no meu estado habitual de "empresto-dependência" assumido, e que continuo (quase) à altura das minhas médias de criança.
Qual o livro que não empresto? Provavelmente, só mesmo o que estou a ler no momento (no caso presente "A noite do oráculo" de Paul Auster).

(Ana Pires)

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